VICTOR MATTINA | ponto-zero/ponto-nulo


VICTOR MATTINA | ponto-zero/ponto-nulo
Curadoria Luisa Duarte


galeria marcelo guarnieri | são paulo

abertura
23 de outubro, 2021
10h-17h

período de visitação
23 de outubro – 22 de novembro, 2021



Alameda Lorena, 1835
São Paulo – Brasil
[ mapa ]

ponto-zero/ponto-nulo
por Luisa Duarte

Se fizermos o exercício de realizar uma breve genealogia da crise da percepção que nos acomete, poderíamos eleger como ponto de partida alguns momentos específicos. O primeiro deles estaria na modernidade que funda a razão ocidental calcada em uma sensibilidade blindada para a qual os fenômenos do mundo deveriam ser desprezados em favor de uma elaboração puramente mental. A diluição do mundo exterior em estados cognitivos (herança da filosofia cartesiana) legou uma experiência do “real” empobrecida. O sujeito moderno forja um corpo impermeável aos sentidos, divorciando-se assim do ambiente exterior. A segunda etapa desta breve genealogia seria composta por um par de acontecimentos: o aparecimento das grandes cidades e o advento da reprodutibilidade técnica na passagem do século XIX para o XX. A temporalidade acelerada das metrópoles e o excesso de estímulos visuais proporcionado pela reprodutibilidade de imagens instauraram uma série de mecanismos que iriam entorpecer o organismo, nublar o olhar, reprimir a memória: o sistema cognitivo da sinestesia – que engloba não só a visão, mas o paladar, o tato, a audição, o olfato – tornava-se, antes, de anestesia (1). Ora, quem lê este texto sabe bem o quanto esse cenário se acentua no século XXI em meio a um cotidiano no qual nos distanciamos da realidade sensível, na medida em que habitamos, a maior parte das horas, zonas digitais cujas telas inundam as nossas retinas com uma quantidade vertiginosa de estímulos. 

A exposição ponto-zero/ponto-nulo, de Victor Mattina, tem como alvo crítico e poético esse contexto. Tanto o conjunto de pinturas quanto a instalação audiovisual apresentadas na Galeria Marcelo Guarnieri possuem como pano de fundo um diálogo com essa crise que, sendo mais rigorosos, ultrapassa a esfera da percepção. Não se trata tão somente de um atrofiamento do olhar, ou ainda de um estreitamento do nosso vínculo sinestésico com o entorno. No limite, essa crise que tem início na percepção finda por obturar toda sorte de imaginação, ameaçar o lugar da nossa constituição psíquica e gerar uma imensa passividade em meio à inquietação generalizada. Pois, sejamos diretos, esse estado de entorpecimento, de constante déficit de atenção em um mundo 24/7, nada mais é do que um estado necessário para o controle social. A anestesia não é individual, é coletiva, não é involuntária, mas programada. Afinal, quando a própria realidade é transformada em narcótico, o torpor torna-se a norma. Nesse sentido, podemos afirmar que todos os trabalhos de Mattina aqui reunidos, ao seu modo, sem alarde, sem narrativas diretas, transitam por um território central da vida política da atualidade.

Paremos para nos aproximar um pouco das obras em exibição. O uso de tons rebaixados, não correspondentes à saturação de cores que o olho humano está condicionado a associar aos objetos ao seu redor, provoca um primeiro estranhamento, amplificado a seguir pelos títulos que fazem referência a diferentes áreas do saber, como a botânica e a entomologia, a anatomia humana, a medicina moderna e a cultura europeia do medievo. Ao longo das telas, fragmentos de corpos animais e vegetais são retratados em enquadramentos inusuais, compondo situações que desconcertam o olhar. Atraem e repelem, a um só tempo. Notem, por exemplo, Ispariz (2020). O título, ligado à Língua Ignota criada por Hildegard von Bingen (1098-1179),(2) denomina espírito (spiritus). Aqui, Mattina forma uma espécie de curto-circuito sardônico ao sobrepor uma ideia metafísica e sobrenatural à representação um tanto quanto distorcida de um buquê de flores dentro de uma lata de lixo. Já em Éter (2020), cujo título evoca a substância química que funcionou como anestesiante na medicina, testemunhamos pés elevados ao redor do que parece ser uma mesa de cirurgia. Assim, nos é dado a ver o sentido figurado da palavra “etéreo”, como aquilo que está suspenso no ar. Existe ainda nessa pintura um jogo de associação entre o desenho da fórmula química do éter e a forma como os pés estão dispostos em relação à mesa hospitalar. 

Esses brevíssimos exemplos revelam a polissemia contida nas telas hoje reunidas. Polissemia, ou multiplicidade de sentidos no interior de uma mesma obra, cujo lugar no mundo não é um lócus dócil, transparente, de rápida apreensão. Ao contrário, por meio de uma linguagem pictórica que se filia à opacidade, Mattina busca perturbar o sistema sensorial do sujeito contemporâneo cada vez mais embotado pela saturação imagética. O singular em sua produção está no fato de que não se trata de compreender como burlar este estado de anestesia dos sentidos e assim, utopicamente, escapar da fadiga sensorial que nos acomete. Ao contrário, a ideia que guia o seu programa poético é a de ultrapassar o mecanismo de segurança de um olhar sempre blindado para que possamos nos relacionar diretamente com o esgotamento que caracteriza a experiência atual. Somente atingindo voluntariamente essa espécie de ponto-nulo poderemos, quem sabe, recobrar algum vínculo vivo com o real em uma época na qual a realidade parece ter se tornado um feed sem fim de estímulos narcóticos – ou o inverso, a fantasmagoria das imagens digitais parece ter assumido a posição de realidade objetiva. 

Por isso o fato de todas as obras de ponto-zero/ponto-nulo se endereçarem de forma insubmissa ao olhar, forjando um constante caráter de obstáculo. Para tanto, afirmam a potência do opaco, da interrupção, da estranheza, no lugar da transparência, do automatismo, do familiar. Citando o arguto vídeo que abre a exposição, “precisamos restabelecer a intimidade libidinosa… com uma nova estética. Uma estética que seja capaz… de nos emancipar do programa”. O programa é esse que nos transforma aceleradamente em zumbis autômatos apartados da dimensão sensível, corpórea, aterrada. Na sua insubmissão, a obra de Victor Mattina instaura uma trilha insuspeitada com vias a despertar um elo vital cotidianamente adormecido. 


(1) Ver BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de “A obra de arte” de Walter Benjamin. In: Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

(2) Na exposição, podemos ver a obra batizada de Língua ignota (2020), que faz referência direta à língua produzida pela abadessa Hildegard von Bingen, no século XII, cujo idioma é composto por um alfabeto de 23 letras denominadas litterae ignotae (letras desconhecidas). 

A Galeria Marcelo Guarnieri tem o prazer de apresentar, entre 23 de outubro e 22 de novembro de 2021, “ponto-zero/ponto-nulo”, primeira exposição individual de Victor Mattina em nosso endereço de São Paulo, que conta com a curadoria de Luisa Duarte.

“ponto-zero/ponto-nulo” reúne dezessete pinturas desenvolvidas pelo artista entre os anos de 2020 e 2021 a partir de sua pesquisa sobre a condição da imagem digital, que na contemporaneidade, perde sua função de mediadora para assumir a função de produtora da realidade. Por meio da linguagem pictórica, Mattina resgata o poder da representação visual e a utiliza como uma ferramenta capaz de perturbar o sistema sensorial do sujeito contemporâneo, cada vez mais anestesiado pela saturação e hiperestimulação imagética. O artista propõe a retomada da experiência estética a partir do que ele chama de “contemplação do obstáculo”, produzindo intervalos entre as imagens e seus referentes. Suas composições se mostram à primeira e rápida vista como enigmas, cenas que, para serem decifradas, resistem, exigindo maior atenção daquele que vê. Como observa Luisa Duarte: “O singular em sua obra é que não se trata de compreender como burlar este estado de anestesia para assim, utopicamente, escaparmos da fadiga sensorial que nos atravessa. Ao contrário, a ideia é ultrapassar o mecanismo de segurança de um olhar sempre blindado para nos relacionarmos diretamente com o esgotamento que caracteriza a experiência atual. Somente atingindo essa espécie de ponto-zero/ponto-nulo poderemos, quem sabe, recobrar algum vínculo vivo com o real em uma época na qual a própria ‘realidade’ foi transformada em narcótico, fazendo do torpor a norma diária.”

O uso de tons rebaixados, não correspondentes à saturação de cores que o olho humano está condicionado a associar aos objetos ao seu redor, provoca um primeiro estranhamento, amplificado pelos títulos dos trabalhos que são formados por palavras provenientes do vocabulário técnico e científico. Fragmentos de corpos animais e vegetais são retratados em enquadramentos inusuais, compondo situações por vezes absurdas, possíveis apenas na realidade da pintura. Para dar forma e nome às suas composições, Mattina recorre ao campo da medicina e da biologia, atravessa corredores de hospitais e salas de diagnóstico por imagem e se apropria da linguagem compartilhada nesses ambientes. O artista explora o caráter insuspeito da linguagem científica para criar imagens incompletas, ou mesmo opacas, desmontando a ideia de que a obra de arte é a perfeição da ilusão de uma realidade sui generis e afirmando que “na pintura, o esforço deve ser pelo efeito contrário – a imagem deve conter o mundo e procurar escapar dele simultaneamente”. Sua pesquisa sobre o poder da representação visual percorre não somente o pensamento de autores como Susan Buck-Morss, Vilém Flusser e Édouard Glissant, mas também a metodologia de trabalho de ilustradores científicos que se utilizam de softwares de computação gráfica para criar identidades visuais de microorganismos, como os vírus. Interessado pela semiótica das imagens computadorizadas, elabora suas pinturas como se estivesse em um laboratório, compondo suas cenas minuciosamente, considerando os significados simbólicos, filosóficos e conceituais de suas escolhas através do entrecruzamento de questões relacionadas à síntese em imagens e em organismos vivos. “Todos estes trabalhos desencorajam os que os fitam a identificá-los como fantasmagorias subjetivas. Em vez disso, desejam estar mais conceitualmente próximos de ‘vedações’ capazes de nos devolver o sistema sinestésico ou, pelo menos, espelhar nossa consciência durante seu processo de reaterramento”, defende o artista.


Victor Mattina
1985 – Rio de Janeiro, Brasil
Vive e trabalha no Rio de Janeiro, Brasil

Bacharel em Design pela ESPM-RJ. Em 2020 foi um dos vencedores da Bolsa de Residência Artist Opportunity do Vermont Studio Center em Vermont, EUA; em 2019 participou da 2ª Residência Artística Soy Loco Por Ti Juquery no Complexo Hospitalar do Juquery em São Paulo, Brasil e em 2016 participou da 6ª Edição da Bolsa Pampulha no Museu de Arte da Pampulha em Belo Horizonte, Brasil. Desde 2012 participa de exposições em instituições públicas e privadas. Em 2017 apresentou a individual “Antes do Fórum”, com Curadoria de Evangelina Seiler, no Paço Imperial, Rio de Janeiro, Brasil; no mesmo ano integrou a exposição coletiva “A Luz que Vela o Corpo é a mesma que Revela a Tela” com curadoria de Bruno Miguel na Caixa Cultural, Rio de Janeiro, Brasil; em 2016 participou de “x4” com curadoria de Marcelo Campos e Efrain Almeida no Solar Grandjean de Montigny, PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil.

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