Mariannita Luzzati



Mariannita Luzzati
curadoria Luiz Armando Bagolin

galeria marcelo guarnieri | são paulo

abertura
30 de julho, 2024
19h-22h

período de visitação
30 de julho – 18 de setembro de 2024



Alameda Franca, 1054
São Paulo – Brasil
[ mapa ]



Paisagem em Fuga: Pinturas Recentes de Mariannita Luzzati
por Luiz Armando Bagolin, junho de 2024

“Nasty little green things” (coisinhas verdes desagradáveis) foi como se referiu Sir Thomas Lawrence, presidente da Academia Real de Artes de Londres, em 1820, às paisagens de John Constable (1776-1837). O pintor contava então com 52 anos e uma larga experiência na anotação dos efeitos luminosos e atmosféricos obtidos a partir da observação da paisagem rural inglesa. Mais do que isso, Constable estava interessado em construir um sistema pictórico que tivesse como base a natureza, mas que não dependesse dela, servindo antes como um ponto de partida para o entendimento de como operar um sistema cromático e de oposição de contrastes em sua pintura. O pintor então aprendeu (e a partir dele, Monet, mais tarde) que, ao pintar a paisagem, deve-se partir sempre de um fundo verde vivo, a fim de obter efeitos mais vibrantes nas sucessivas camadas de cores que serão aplicadas depois sobre este fundo.

Invertia-se ou se modificava assim o princípio segundo o qual, na pintura “clássica” ou mais antiga, de gênero alto (a pintura histórica) ou de gêneros mais elevados do que a pintura de paisagem (que era considerado um gênero baixo), iniciava-se a composição a partir de um fundo avermelhado (com cinábrio) ou acastanhado (com sépia ou bistre) como garantia da recepção das luzes e do modelado do claro-escuro na progressão da feitura da pintura. Este verde, que tonalizava todas as camadas de tinta acima dele, e que tanto horrorizou o cavalheiro inglês seu contemporâneo, era um expediente técnico fundamental para a pintura da atmosfera ou da ambiência dos lugares que se tinham como mote da representação. Ele obviamente destruía a possibilidade de obtenção de um claro-escuro dócil, substituindo-o pelo efeito de uma implosão do campo cromático a partir das bordas do quadro, e depois, pela expulsão de toda luz ali contida para o olho do espectador.

Ao mesmo tempo, essa mudança sinalizava a busca de uma autonomia para o pintor de paisagens e uma abertura para o que viria a ser associado à modernidade na arte. Na pintura, isso correspondeu à total independência do pintor em relação às demandas externas às questões do seu próprio fazer, da construção da pintura como uma linguagem silenciosa suportada apenas pelas tintas, pelas cores advindas dessas, assim como pela composição e pela fatura (a gestualidade dos toques dos pincéis) deixada propositadamente na superfície da tela.

Em suas pinturas recentes, Mariannita Luzzati parte de um princípio de operação semelhante para a construção de suas paisagens. As telas, pequenas, sugerem uma cadeia de pequenas montanhas ou formações rochosas vistas à distância, semicobertas pelo mar ou por névoas (são vistas do Vietnã). As imagens provêm de fundos pintados com verde ftalo, óxido de cromo verde, azul ultramar ou azul cobalto, nos quais vão se sobrepondo diversas camadas de cores, perfazendo uma trama pictórica que separa ou abstrai a pintura de seu referente. Mariannita desenvolveu um sistema pictórico próprio há mais de 25 anos, no qual o tempo de maturação de cada trabalho interfere na composição dos próximos, tudo ficando com a mesma sintonia tonal. Em geral, a sua pintura rebaixa as cores, fazendo o espectador participar de uma atmosfera, às vezes densa, às vezes rarefeita, que permite a contemplação do próprio ato de pintar. Neste rebaixamento tonal, o motivo ou assunto se torna desimportante, sendo apenas a memória de um ponto de registro, de um deslocamento que é álibi para a reconstituição de sentimentos ou experiências vivenciadas.

Um pouco como em Jean-Jacques Rousseau (Os devaneios de um caminhante solitário, 1782), as paisagens originais desenhadas ou fotografadas por Mariannita, e que são o ponto de partida de suas pinturas, servem de pretexto para explorar a trilha de seus próprios devaneios, ao mesmo tempo em que a pintura vai tecendo o campo cromático que a torna uma coisa no mundo. Esta aparente indecisão entre lugar e não-lugar, entre agir no mundo como um ser político e abstraí-lo em favor de um fazer que se justifica a si mesmo, faz parte do contexto no qual a artista se formou, após a irrupção da assim chamada “geração 80”, grupo heterogêneo de artistas e soluções plásticas que tinham em comum, no final da década de 1980 e início de 1990, pouco interesse pelas grandes e graves questões políticas e conceituais que marcaram as produções artísticas das décadas anteriores. Foi uma geração que demarcou a volta da experimentação com médiuns e suportes tradicionais (da pintura, do desenho e da gravura), embora muitas vezes sem o interesse pelo conhecimento acumulado ao longo da história da arte envolvendo esses médiuns.

Mariannita, ao contrário, ciente de que a linguagem da pintura se confunde em grande parte com a história da pintura de paisagens, estudou muito os esquemas compositivos de artistas de épocas anteriores, nacionais e internacionais, sem, no entanto, perder do horizonte a perspectiva de construção de uma obra singularmente reconhecível (ela tem uma marca própria, digamos assim).Nas novas pinturas, vê-se, no entanto, aquele rebaixamento de cor presente nas telas de grandes dimensões ser substituído por uma concentração de matizes e pela densidade do campo cromático. É como se Mariannita tivesse aprendido a lição de Constable em seus estudos sobre a paisagem. A vibração da cor, não de todo ainda espargida pela grande extensão de uma grande tela, mas concentrada no espaço contido de uma pequena, é capaz de devolver ao olho do espectador a mesma fatura (já conhecida da pintora) numa potência maior ou de mais amplitude em relação à pulsação da luz dentro das camadas de cor. O olhar do espectador se ajusta a esse novo campo (com dimensões mais modestas), liberando-o do compromisso de ter que mover o seu corpo para longe da superfície e da parede na qual está fixado o quadro com o intuito de abarcar o campo integral da pintura. Agora é possível apreendê-la de uma única vez, a partir de uma posição frontal em relação à mesma, sendo a aproximação a posteriori apenas desejável para se certificar da fatura da artista – o meio para se acessar em parte seu processo de construção.

Como referido, as características principais da pintura de Mariannita permanecem: o silêncio e o convite à contemplação da própria pintura. Permanece também o sentido atmosférico, uma espécie de sfumato, que se interpõe entre a superfície pintada e o olho do espectador e que, ao final, desabilita o lugar ou a paisagem original da qual se partiu para a construção da imagem.As pinturas pequenas têm também uma relação mais direta com o desenho, entendido como a anotação rápida do assunto ou motivo principal. Neste sentido, a pintura de Mariannita mantém uma relação com o gênero pitoresco, muito em voga na antiga Inglaterra, país que a artista abraçou como sua segunda residência. Para o reverendo William Gilpin (1724-1804), por exemplo, o pitoresco era “aquele tipo peculiar de beleza, que é agradável em uma pintura”. Associado a formas agradavelmente irregulares, situava-se entre a beleza e a sublimidade. Durante excursões de verão, Gilpin visitou o País de Gales, as Terras Altas da Escócia e outros cantos remotos da Grã-Bretanha em busca de locais pitorescos, e seus relatos de viagem inspiraram uma onda de turistas interessados no pitoresco. Seguindo seus passos, com materiais de desenho em mãos, os viajantes eram incentivados a esboçar, examinando “a face do país pelas regras da beleza pitoresca” e “adaptando a descrição da paisagem natural aos princípios da paisagem artificial”. Tal adaptação contava com o uso de expedientes inventivos, tais como o Espelho de Claude (Claude’s mirror), um pequeno estojo de madeira revestido de veludo castanho enegrecido recoberto com uma lâmina de vidro na frente. Quando o pintor se situava diante de uma paisagem digna de ser pintada, virava-se de costas para ela e a mirava através deste vidro. As tonalidades monocromáticas refletidas pelo estojo ajudavam então o pintor a realizar uma primeira aguada com os mesmos tons na tinta, para estabelecer as massas principais na representação.

Para Gilpin, a garantia de uma paisagem artificialmente bem composta, pitoresca, era o equilíbrio (balance) entre aspectos ásperos ou rugosos (roughness) – tronco de árvores, arbustos, pedras, hera, ruínas antigas, etc. – e aspectos macios ou suaves (smoothness) – superfície de lagos, céus sem nuvens, relvas batidas pelo vento, etc. A manutenção da proporção entre essas duas qualidades permitia, assim, à paisagem natural se tornar apenas um pretexto para a conversão em uma imagem da paisagem, mais conveniente ao gosto e aos padrões culturais daquela época. Gilpin escreveu que “a rusticidade forma o ponto mais essencial de diferença entre o belo e o pitoresco” — e uma ausência de elementos regulares ou lineares deveria orquestrar efetivamente uma série de elementos composicionais adicionais: distância, luz/sombra, “variedade” e perspectiva. Nas palavras de Gilpin, “a composição pitoresca consiste em unir em um todo uma variedade de partes”. Boa parte da produção dos assim chamados “artistas viajantes” estrangeiros que visitaram e representaram paisagens brasileiras durante o século XIX se insere nesta estética ou gênero particular de arte. Logo, tem muito pouco de realidade ou verismo sobre o Brasil.

Outro expediente usado para a composição de paisagens pitorescas, especialmente relacionando um desenho genérico, sem conotação específica com algum lugar, foi explorado pelo artista inglês Alexander Cozens (1717-1786) no seu “A New Method of Assisting the Invention in Drawing Original Compositions of Landscape” (1785).Neste tratado, Cozens definiu uma mancha (blot) como “uma produção do acaso com um pequeno grau de desenho” e reconheceu a influência de um trecho do “Tratado sobre Pintura” de Leonardo da Vinci em suas ideias, que recomenda que os artistas procurem inspiração em manchas ou marcas em paredes antigas e desgastadas pelo tempo. Com inúmeros exemplos de aguadas e gravuras, Cozens parte sempre de configurações muito simples sobre as quais vai acrescentando sombras e luzes até formar padrões reconhecíveis como paisagens.

De modo semelhante, mas por meio de um método inteiramente diferente, Mariannita também constrói passo a passo, toque a toque, as suas vistas ou imagens, partindo de configurações muito simples sobre as quais vai frisando as camadas de cores, como se se tratasse de um espelho embaciado por vapores. Através destas camadas, a paisagem surge para o olho, sugerindo ambiguamente tratar-se de algo visto obstaculizado ou de algo apenas sonhado, cuja imagem vai evanescendo rapidamente, teimando em se fixar.Na mostra atual, há três pinturas de grandes dimensões, de séries anteriores, que fazem uma espécie de contraponto às novas telas menores. Num dos dois dípticos presentes, uma vista em grises, verdes, azuis, laranjas e amarelos esbranquiçados descortina-se à frente de uma formação rochosa ao fundo (Rio de Janeiro?). Neste grande campo de cores lavadas, movem-se três pequenas silhuetas escuras de figuras humanas. Outro painel, ao lado deste, mostra uma composição semelhante, mas agora com as figuras como espectros brancos. Os seus corpos parecem refletir ou emanar a mesma luz que se distribui em faixas e varre toda a superfície da tela. A presença dessas figuras em cena não diminui o sentimento de solidão consentido a essas pinturas; antes o amplifica.

O fato da artista se colocar como uma primeira observadora, solitária nesta imensidão, nos posiciona intuitivamente na mesma situação ou ponto de vista. O ponto de inflexão entre as telas maiores e as novas, menores, parece ser exatamente este, ou seja, o desejo da artista em tornar tudo o que vê mais próximo, no sentido de mais familiar, por mais que os sentimentos de isolamento e inacabamento prevaleçam. E por maior que seja a dimensão do campo colorido (ou do quadro pintado), nunca é ao monumental que sua obra se endereça. Se sua pintura dispensa propositadamente uma profundidade, dispensa igualmente a escala da paisagem como algo épico e farsesco. O seu trabalho, ao contrário, oscila sempre entre um campo de projeção de um espaço físico observável e um espaço de pura imanência que pertence à realidade da própria pintura. Por isso, é avesso também ao sublime grandioso ou terrível (imaginado por Edmund Burke).

Mário de Andrade, contrariando as observações de Saint-Hilaire sobre a escala da arquitetura colonial brasileira, em particular nas nossas igrejas em comparação com as igrejas construídas na Europa, propõe uma oposição ao extravagante e ao monumental como opção racional que nacionalizaria intuitivamente a presença de um sentimento “Renascente” na colônia de ultramar:”É certo que elas não possuem majestade, como bem denunciou Saint-Hilaire. Mas a majestade não faz parte do brasileiro, embora faça parte comum da nossa paisagem. Carece, no entanto, compreender que o sublime não implica exatamente majestade. Não é preciso ser ingente para ser sublime. As igrejas do Aleijadinho não se acomodam com o apelativo “belo”, próprio à São Pedro de Roma, à catedral de Reims, à Batalha, ou à horrível São Marcos de Veneza. Mas são muito lindas, são bonitas como o quê. São dum sublime pequenino, dum equilíbrio, duma pureza tão bem arranjadinha e sossegada, que são feitas pra querer bem ou pra acarinhar, que nem na cantiga nordestina […] O Aleijadinho soube ser arquiteto de engenharia. Escapou genialmente da luxuosidade, da superfetação, do movimento inquietador, do dramático, conservando uma clareza, uma claridade é melhor, puramente da Renascença”.

No díptico vermelho, no qual se vislumbram nesgas de vegetação crestada, árvores ou palmeiras num horizonte em chamas, exposto sozinho ao longo de uma grande parede branca, é possível vislumbrar toda a paixão da artista pela paisagem brasileira e, ao mesmo tempo, sua temperança, controle e razão no momento de transformá-la em pintura.

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