Luiz Paulo Baravelli | 235 pinturas-gato
galeria marcelo guarnieri | são paulo
abertura
22 de novembro, 2024
18h-21h
período de visitação
22 de novembro, 2024 – 17 de janeiro, 2025
Alameda Franca, 1054
São Paulo – Brasil
[ mapa ]
235 pinturas-gato
por Diego Matos, novembro de 2024
9. Arte é a impureza que torna sua autodefinição tautológica, incompleta.(1)
Luiz Paulo Baravelli
No rico panorama visual e plástico, intertextual e cinemático, da arte de Luiz Paulo Baravelli (São Paulo, 1942), espreita uma ação silenciosa: a subversão do tempo e a destituição de sua primazia. Esse movimento, tal qual uma canção jazzística, que pelo improviso reverbera tanto em sons quanto em silêncio, deve ser levado em conta no mar de referências, espaços, figuras, naturezas, construções, dias e noites que cabem neste volume pictórico incomensurável que o artista nos presenteia. São duzentas e trinta e cinco pinturas-desenho (como eu gostaria de chamar) que contaminam e se disseminam pelo espaço da galeria.
A produção artística de Baravelli contempla um universo de repertórios, signos, formas, texturas, cores, luzes e sombras que espelham a riqueza de seu pensamento e a capacidade inequívoca de transpor à mão o desejo ou a lembrança que lhe vem à mente. Estes trabalhos em pequeno formato, as pinturas-desenho são representantes de um turbilhão de imagens e informações que o artista reteve ao longo dos anos, retrabalhando-o internamente e devolvendo-o ao mundo com humor próprio em suas composições gráfico-pictóricas. Nesse sentido, é válido falar da importância de sua memória, talvez o maior bem do artista, além da forma como ela é apresentada.
Aliás, trago a ideia de pinturas-desenho justamente por considerar que estes inúmeros quadros indicam uma colocação precisa do artista ao dizer que “desenhar é examinar de perto, pintar é ver de longe” e que “um desenho é um instante de intimidade e é da natureza da pintura que ela seja pública”(2). Cada uma dessas vistas retangulares emana uma evocação pendular entre o desenho e a pintura, a pintura e o desenho.
E, ao final, torná-las públicas em um espaço expositivo as legitima enquanto pintura. Assim, acontece o encontro com o espectador, seduzido pelo que vê: na mirada de cada pintura, um novo encontro amoroso. É, na verdade, algo que acontece com esse outro quando olha (obra) e lê (título). Um movimento de ida e vinda, um jogo permanente de sedução que nunca se interrompe por completo.
É por meio de livres associações que emergem da memória do artista as fagulhas para o repertório de um quadro. Trata-se de algo que gostaríamos de chamar de uma razão sensível, para além da intuição. Por exemplo, pela memória, o artista encontra pontos de contato entre uma referência literária em título e uma paisagem insólita que foi ali traçada, gerando dúvida ou inquietação diante desses dois elementos. Sugere também que algo que é da ordem do exterior conviva com seu reverso interior, um ambiente mais acolhedor; que um passarinho nos avise que há vida lá fora, para além da janela; que o artista pode se autorretratar de maneiras distintas, inclusive com o uso da metáfora; que aquilo que imaginamos ser do âmbito do espaço privado poderá tornar-se público; que há uma permeabilidade possível entre o céu e a terra; e por aí sigamos.
Se existe, portanto, uma razão sensível que o fez acumular repertório e estabelecer uma identificação da sua produção de forma mais ampla, há também aquilo que o próprio artista denomina de uma “sensibilidade microscópica”, que contamina a obra e promove as aproximações que nos parecem mais insólitas. Essa sensibilidade, por conseguinte, nos captura no mínimo detalhe: aquilo que percebemos na aproximação amorosa para com cada uma das pinturas. No mais das vezes, ela pode comparecer silenciosamente, de forma sorrateira, na relação entre o título e a imagem/imaginação que se apresenta. E não se trata de produções com caráter propriamente narrativo, algo fixo e roteirizado, como um requadro ou mesmo um storyboard de um filme ou de uma revista em quadrinhos. Além, gostaríamos de dizer que a produção de Baravelli nos oferece um índice de cinema, mas nunca o cinema em si.
E há, por parte dele, obviamente, o exímio domínio técnico do desenho e da pintura, aplicando ambos com destreza nas mais variadas alternâncias de escala. Porém, para os quadros em pequeno formato, percebe-se o apuro daquilo que se convencionou chamar de “desenho de observação”, algo habitual nas escolas de arquitetura, em que é revelada a identidade do traço de cada um, a geometria descritiva torna-se ferramenta divertida e os jogos de luz e sombra são trabalhados minuciosamente na inversão de planos postos em algumas pinturas. Todos estes quadrinhos são fruto de uma permanente depuração de linguagens e técnicas. Como o próprio artista nos conta, há dois gêneros que são construídos em quadro: as pinturas-cachorro e as pinturas-gato. Este segundo tipo é o que nos interessa aqui.
Segundo Baravelli, “as pinturas-cachorro fazem como os cachorrões carentes: assim que você entra, elas vêm com as patas sujas de tinta, pulam na sua camisa branca e lambem sua cara”. Imaginem um São Bernardo ou um Golden Retriever. Pois é, nas situações de contato com muita intensidade, já não cabe mais propriamente o jogo da sedução. Elas podem nos atrair ou repelir, tudo na mesma medida(3). “Já as pinturas-gato, quando você entra, vão para baixo do sofá e ficam te olhando. Se você chega perto e faz ‘pspsps’, elas vão embora. Depois, se elas gostam de você, e no tempo delas, chegam devagarinho sem você perceber e roçam de leve na sua perna. Aí o jogo pode começar”(4).
Desse modo, os quadrinhos (como ele mesmo gosta de chamar) são projetos-gato. As percepções e descobertas não acontecem de imediato. Há a constituição de um hábito a ser estabelecido ao longo de muitas visitas. Para cada uma, há um porém ou senão, que se coloca em cada observação. Aliás, o gato sorrateiro, discreto, comparece em alguns trabalhos da trajetória do artista, um personagem de desvio que nos magnetiza, independentemente da escala da pintura(5).
Ademais, é da lógica do seu pensar e do seu fazer a permanente subversão do tempo, tanto quanto ideia como balizador de nossas vidas cotidianas. É de ordem política, não no sentido corriqueiro de instrumentalização, mas no sentido de uma política da arte, a diluição ou o derretimento da noção comum de tempo, algo que está impregnado em seus trabalhos, dos menores aos maiores, atendo-se radicalmente à própria ideia de que a arte não opera em nosso tempo cronológico, visto diariamente no relógio ou no celular.
Essa destituição do tempo também reverbera na própria rotina de trabalho do artista: Baravelli escolhe por inverter intencionalmente o ordenamento do dia ao escolher trabalhar no silêncio das noites. É nesse momento que a luz está concentrada no ambiente do ateliê e a arte torna-se o centro de atenção. Afinal, não se está inundado pela clareza e luminosidade exterior: aquela que nos mostra a exuberância da natureza e das cidades.
Uma abertura pictórica, uma expansão espacial
Acreditamos que esse mar de pinturas que por ora inunda a galeria é resultado direto de uma rotina de expressão artística constituída em sua prática de ateliê, um hábito solitário cultivado ao longo de muitos anos. Essa prática cotidiana torna-se também aporte poético para o artista.
Em certo sentido, dar visibilidade ao acúmulo, dispor em alguma ordem, mesmo que arbitrária, os novos quadros do artista é também uma celebração da rotina. Algo que tem começo e fim temporários, como ciclos que recomeçam dia após dia. O número de pinturas, inclusive, cria uma razão interessante para esses ciclos, ao se aproximar do número de dias necessários para a produção destas pinturas-gato. E, ao mesmo tempo, há a acentuação da densidade que ali constatamos, algo que se afirma com eloquência na distribuição dos trabalhos pelo espaço expositivo.
Desse modo, retomo a pontuação acerca do fenômeno musical do jazz. De partida, me vem à mente a música “‘Round Midnight”, de Thelonious Monk (muito embora atribuída apressadamente a Miles Davis, por ter tido sua versão mais reproduzida). Ela contém uma marcação de tempo muito singular, constrói ciclos, abrindo a condição para a existência do intervalo e, por consequência, do silencioso, quase como uma ínfima espera por algum acontecimento, alguma transformação. Isso é ainda mais eloquente quando interpretada pelo próprio Monk ao piano(6). É o fenômeno da rotina, a aparente repetição de algo, mas que nos entrega uma nova intensidade, uma nova pintura, uma nova associação entre e o abstrato e o figurativo.
É interessante também voltarmos à ideia do silêncio que acomete uma suspensão de tempo, com a qual eu abro o texto: esse exímio domínio entre uma nota musical e outra, entre um ciclo e outro, entre uma dobra desenhada que separa o conforto doméstico de um abismo que se revela nas pinturas de pequeno formato ou mesmo nesse lugar divertido e desafiador entre a obra e o título poético-literário. Afinal, as artes visuais nos falam de uma outra forma. Sua fruição nunca foi e não é pelo texto contado, explícito: a entrega é pelo olho treinado pela experiência de vida de cada um. Como nos sentencia Baravelli em seu texto “Pontos de um pintor”: “a arte é a criação de uma ilusão. Inclusive da ilusão de realidade e de transcendência”. Abertos, portanto, estamos diante de toda janela que nos apresenta uma ilusão, as janelas das pinturas-gato.
Forma-se desse modo uma constelação que não é estática, pois nosso olho vai ao encontro de novos caminhos, que nascem na observação de seus quadrinhos. Como escreveu o crítico Olívio Tavares de Araújo, a obra de Baravelli é de uma estrutura constelar. É essa composição que por ora é sublinhada nas paredes expositivas, permitindo até uma permeabilidade de sentidos entre elas próprias, apesar de suas diferenças e antagonismos.
Aliás, a ênfase na permeabilidade é inerente também ao próprio raciocínio artístico e felino. Essa permeabilidade é desdobrada no que se apresenta em cada uma dessas pinturas. Por isso, é difícil fixar temas ou simplesmente descrevê-las. Afinal, todas elas ganham contexto espaço-temporal quando juntas em uma exposição, mesmo que não possuam relações específicas umas com as outras. É como se elas próprias fossem autodeterminantes. Como o próprio artista apontou, acontece entre a obra e seu novo interlocutor/espectador o fenômeno da suspension of disbelief (suspensão da descrença), o que permite ao outro apreciar, estabelecer devaneios, distanciando-se de uma realidade pragmática que está acima da superfície. É um mergulho profundo em águas mais turvas. A lógica racional perde sentido de orientação: estamos abertos a um jogo múltiplo de idas e vindas em que nada é de fato descartado, só está deslocado daquilo que apreendemos como certo ou comum.
Mais uma vez, fica claro que o artista não abandona nada: ele põe luz em sua biblioteca, em seus discos, em suas gavetas, em seus recortes, em suas coleções de outrora reconfigurando tudo para uma nova presença. E tudo pode, eventualmente, se entrelaçar, apresentando esse universo de adição, alguma coisa como um contínuo palimpsesto. Por isso, para tentar ser um pouco mais claro no que gostaríamos de dizer, recorro à literatura e relembro o conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges, publicado pela primeira vez em 1941(7). Em seu texto, narra-se a existência de uma biblioteca que parece tender ao infinito e resguardar absolutamente tudo o que a magia das palavras concatenadas parece nos dar, não importando a utilidade delas.
Afinal, se no conto de Borges temos a metáfora que identifica uma paridade entre o mundo e a literatura, dois universos que se confundem, na arte de Luiz Paulo Baravelli, por certo, podemos dizer que o corpo de seus 235 quadros são a paridade ou a aproximação com o mundo que ele inventou e viveu. Todavia, em sua compilação sistemática das coisas e das ideias, apenas uma fração deste mundo concatenado entre realidade e ilusão é revelada, uma constelação impura em que a abundância e a densidade são valores irretocáveis.
(1) Sentença extraída de seu texto “Pontos de um pintor”, publicado originalmente no primeiro número da Revista Malasartes, No. 1, Set/out/nov de 1975.
(2) Observações do artista sobre a linguagem do desenho, transcritas da publicação: BARAVELLI, Luiz Paulo. Luiz Paulo Baravelli comenta o seu trabalho (Portfolio Brasil: artes plásticas). São Paulo: J. J. Carol, 2009.
(3) Ao conversarmos sobre as pinturas-cachorro, falamos da relevância da arte pop de um modo geral para a sua geração. E, no caso do próprio Baravelli, a admiração pelos ingleses. Entretanto, há um artista norte-americano que o marcou muito, Robert Motherwell (1915 – 1991). Ele nos relatou o impacto profundo que foi ver os trabalhos em grande dimensão de Motherwell na Bienal de São Paulo, bem antes da famosa 9ª Bienal de São Paulo (1967), da qual participou. Provavelmente se referia à edição de 1961, já no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, que contou com uma sala especial do norte-americano, com pinturas de grande dimensão.
(4) Trechos extraídos de anotações gentilmente cedidas pelo artista, produzidas no contexto desta sua nova produção. Gosto particularmente de uma passagem que também está em seu texto, que conversa especialmente com a segunda parte deste pequeno ensaio: “se eu tivesse de escrever sobre essa exposição, começaria assim: acho impossível dizer algo sobre a exposição. Em seguida vou tentar entender por que acho impossível. E aí vem um textão difícil”.
(5) Em 1975, para a exposição no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM Rio) de suas pinturas entre 1972 e 1975, o cartaz trazia um recorte de sua pintura que continha a silhueta de um gato. Esse recorte era uma parte da pintura Glória Volta (1975), na qual a presença do gato puxava o olhar para o seu canto inferior direito. O artista menciona em depoimento a importância daquele momento ao constituir o seu processo de pintura, “ao usar elementos abstratos e figurativos em um contexto figurativo e todo o arsenal histórico da pintura em harmonia com o que alguns iriam chamar depois de ‘imagens de segunda geração’”. Trecho extraído da publicação: BARAVELLI, Luiz Paulo. Baravelli (Portfolio Brasil: artes plásticas). São Paulo: J. J. Carol, 2007.
(6) Trago um trecho das anotações do artista que cabe nesta passagem do ensaio e que se relaciona ao poder silencioso de Thelonious Monk. Como o próprio Baravelli descreve, trata-se de uma anedota, talvez apócrifa: “Thelonious Monk fazia um tour na Alemanha. O repórter ingênuo pergunta, através do intérprete: ‘Mr. Monk, qual é a essência do jazz?’ O intérprete traduz e Monk fica em silêncio. Depois de uns minutos, incomodado, o repórter pergunta ao intérprete: ‘Ele não entendeu?’ Monk responde: ‘Eu respondi, quem não entendeu foi ele’.
(7) Para quem se interessar, o conto pode ser encontrado na seguinte publicação traduzida para o português pelo Davi Arrigucci Jr., compilação originalmente publicada em 1944: BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.