Laura Vinci | TRIZ



Laura Vinci | TRIZ

galeria marcelo guarnieri | ribeirão preto

abertura
3 de agosto, 2024
14h-18h

período de visitação
3 de agosto – 14 de setembro, 2024


rua nélio guimarães, 1290
ribeirão preto – sp – brasil / 14025 290
[ mapa ]


Triz, de Laura Vinci
por Diego Matos, julho de 2024

Para sempre é sempre por um triz (1)

Entre a escultura e a instalação, entre a dança e o teatro, está a produção poética e material da artista Laura Vinci (São Paulo, SP, 1962), sempre na busca por nos trazer a matéria do espaço e do tempo de maneira simultânea. Em sua nova presença expositiva, temos a apresentação de Triz, a nova ação da artista na Galeria Marcelo Guarnieri de Ribeirão Preto, reunindo algumas frentes de seu universo artístico.

Trata-se de uma artista que, apesar de ter plena consciência de seus alicerces históricos na arte brasileira, possui uma produção que olha especialmente para uma razão instalativa, que nem sempre dialoga com a racionalidade da tradição construtiva local, afastando-se de princípios conceituais desta matriz histórica. Na verdade, há sim uma preocupação ambiental em que o espaço e, seu par imediato, o tempo se comungam na configuração momentânea da obra.

Tendo em vista o seu universo poético e conceitual, podemos nomear artistas contemporâneos brasileiros que de certo comungam interesses semelhantes aos da Laura Vinci. Além de nomes incontornáveis da arte brasileira como Tunga, Iole de Freitas, Nelson Felix ou Carmela Gross, percebo também uma aproximação com artistas geracionalmente mais próximos como Artur Lescher, Ana Paula Oliveira ou Vanderlei Lopes. No entanto, mais do que tentar enumerar artistas que comungam de interesses próximos, acho de suma importância discorrer sobre alguns aspectos relevantes de sua produção. Por isso, em texto, sinalizo alguns termos que me parecem relevantes na observação crítica de suas mais variadas obras.

Em primeiro lugar, entendemos que a obra de Laura Vinci possui uma vocação pública, não apenas por distinguir a natureza de um lugar, entre o público e o privado, entre o encontro ou a intimidade, mas por gerar um ambiente em que espectador ou visitante (que percebe o trabalho), é contaminado pela presença sutil da obra. Esta interfere inclusive na sua relação com o outro – aquele com quem negociamos a ocupação, ou o uso de um determinado perímetro de espaço. Há, portanto, um jogo tático de sedução, em que a beleza é percebida nodesconhecido, sendo ela a força de atração para quem ali se dispõe a ser afetado. Portanto, por meio de uma situação efêmera que ali é posta, aparece esse apreço quase onírico do que não conhecemos, algo que é da ordem do sublime. Podemos citar como exemplo a própria dinâmica instaurada em Triz. Nela, há a repetição de uma estrutura metálica composta por duas ou três escoras de aço cromado, atravessadas perpendicularmente por uma espécie de cone (produzido a partir de peças que compõem instrumentos de sopro), que emite um ruído sonoro seguido de uma fumaça, em um certo intervalo de tempo. Isto, por sua vez, mobiliza o visitante, e o faz estar em um estado de alerta e curiosidade. Essas peças douradas cônicas e as várias hastes, muito polidas, onde está um maquinário acoplado, remetem à rigidez e à assepsia de um ambiente fabril ou laboratorial controlado, no qual não se identifica uma função existencial de uso, apenas o encanto sedutor localizado entre a artimanha técnico-científica e a riqueza adornada dos materiais.

A meu ver, é aquilo que Guilherme Wisnik indica em sua conversa com a artista: a ideia de uma violência surda que parece nos levar a sentimentos conflituosos. Esse valor é também agravado pelas estruturas de correntes dependuradas pela galeria, assim como pelo zigue-zague dos fios tensionados na parede do espaço expositivo. Por isso, gosto, e até prefiro, a ideia de uma potência de energia a ser desprendida, ou de um possível perigo eminente que está à nossa espreita. Trata-se de algo que nos afeta sinestesicamente.

Entretanto, seguindo para além dessa potência armazenada, a artista não interdita o espaço, o lugar em que a obra se desenrola, seja ele interno ou externo. Ao contrário, gera presenças intermitentes, por vezes ritmadas; mas que em outras situações imaginadas parece ocorrer de forma mais aleatória e imprevisível como se não houvesse ali uma intervenção prevista pela inteligência sensível da artista. De maneira alguma, não se trata de um descontrole, mas que toda via é capaz de gerar reação do ambiente que a cerca. Penso que tal condição permite que um trabalho ganhe caráter único para cada situação em que acontece.

Para tantos desses sentidos que tento pôr em palavras, dois trabalhos-chave podem ser mencionados: a já histórica intervenção realizada no projeto Arte/Cidade III em 1997, aquela agigantada ampulheta nas ruínas de uma antiga cidade industrial, e a intervenção escultórica e urbana “No ar”, na qual uma delicada bruma abraça com uma força sutil os espaços em que é ativada, desde sua primeira versão no final dos anos 2000. Há como a representação de um ciclo comum à efemeridade de um espetáculo, uma espécie de movimento que se sucede ao longo do tempo de presença do trabalho. E, que a qualquer momento, poderá sofrer alguma transformação, ruptura.

Por consequência, Instabilidade e Impermanência – dois conceitos e/ou ideias relevantes para entender o campo poético de Laura Vinci –, entram como duas qualificações possíveis para entendermos o que está em jogo, agora em Triz. O próprio anúncio sonoro que ouvimos das estruturas que também emitem fumaça, nos alertam para esse vir a ser. É algo muito bem pontuado pela crítica de arte Thaisa Palhares, em seu texto “Paisagem Dessublime”.

Também, a distribuição de fios e correntes com peças delicadas em vidro, e as peças escultóricas de mármore ao rés do chão, acaba por inserir uma série de personagens na instalação que chamam o nosso olhar para uma observação mais aproximada. Prevejo um mesmo estranhamento sedutor que me atravessou quando vi a instalação Ainda Viva, de 2007, em que uma nobre bancada de mármore branco era acompanhada de cônicas peças em mármore, e de um número generoso de maçãs. Essas, com o passar do tempo, tendiam a apodrecer. Ironicamente, é como se capturasse a impermanência de uma natureza-morta.

Ainda, valeria atentarmos para as palavras “triz/tris”. Na língua portuguesa, o uso de “tris” com s, tem um outro significado, que, a meu ver, também pode ser associado à instalação. Há no conjunto alguma sensação de delicadeza quando percebemos a presença do vidro, as estruturas exíguas e a elegância das peças; por isso, “tris” – que significa “ruídos, sons de coisas que se quebram, desmoronam, que se estraçalham” –, também caberia no universo de signos que reverberam nesse conjunto de trabalhos instalativo. Assim, compreende-se uma certa ambiguidade que ali é apresentada.

De modo geral, compreendo que o pensamento escultórico da artista resvala na cena dramática da tríade corpórea “performance – dança – teatro”, três linguagens que atravessam a produção plástica e conceitual da artista. Talvez seja essa a tríade que ao mesmo tempo alicerça e aponta ao futuro de sua prática artística. É aqui que mais enxergo o pulsar contemporâneo de Vinci.

Podemos inclusive mencionar a ideia de um desaparecimento da escultura nas investidas artísticas de Laura Vinci, como discutido em entrevista conduzida por Guilherme Wisnik e Luisa Duarte. É bem verdade que há sim uma desmaterialização do gênero escultórico moderno que, entretanto, é a própria requalificação de um modo de operar a arte que hoje vive e convive em constante negociação, justamente com as três linguagens mencionadas anteriormente.

É como se a operação artística fizesse um movimento transitório, sobrepondo características de diversas manifestações culturais. Aliás, em sua mais recente publicação, fica ainda mais explícita sua relação com o próprio teatro e a dança, para além inclusive de sua destreza como cenógrafa próxima de uma direção de arte. Vejo a artista advogando por um lugar híbrido de atuação: a criação de um espaço material em que o corpo não aparece de maneira literal, ou sugerido pelas mais variadas peças, só que ele é instado a se fazer presente.

Laura nos presenteia com um trabalho que caminha para borrar as fronteiras do que seria um percurso mais definido com a origem e o fim bem delimitados. Há uma circularidade de tempo e matéria que não se finaliza, conduzindo para recomeços e variações de intensidade. É algo que já havia sido anunciado na instalação “Máquina do Mundo”, de 2006, em que uma esteira industrial carrega porções de areia de um morro a outro. Um gesto tão comum na monstruosidade do universo extrativista e industrial, mas que na arte ganha valor de tempo, e desestabiliza o valor de permanência do entendimento escultural.

No espaço da Galeria Marcelo Guarnieri, essa é uma característica que se mantém em evidência, juntamente com a ideia de uma ocupação insinuada quase que total dos espaços horizontais e verticais, chão e parede, peso e elevação. As próprias estruturas metálicas estabelecem uma ligação entre os componentes espaciais arquitetônicos.

Em Triz, como a própria Laura Vinci coloca em seu último livro, percebe-se uma arena, um espaço de presença em que muito de sua produção escultórico-espacial ganha uma outra forma de estar, estar em conjunto, estar em relação. Como ela mesma disse em entrevista publicada e depois em nossa conversa em sua oficina-ateliê, há em sua produção o desejo quase silencioso de dar visibilidade à transmigração (2) de elementos que povoam o contexto de suas ações diante da tríade que mencionamos anteriormente. Gosto também de dizer que agora aparece, ainda mais sublinhada, a configuração de cena, tal qual a que vemos na tensão do cinema, no campo sedutor da criação cinematográfica.

Por enquanto, gostaria de enfatizar a potência agregadora da obra de Laura Vinci que te convoca a partir de uma capacidade de sedução. Não só pelo que identificamos como beleza plástica, assim como também pelas situações desconhecidas que o trabalho nos coloca ao definir materialidade ao tempo, anunciando presença. Trata-se de algo que está por vir, a mesma eminência que a noção dada pela palavra “triz” poderia evocar. Por isso, é também um exercício permanente da instantaneidade, fornecido pelo sopro sonoro de fumaça, cadenciando a percepção espaço-temporal de cada indivíduo que circula pelo espaço. É o estímulo último à presença: se a construção de cena do teatro ou do cinema estimula a atuação do ator/atriz, a instalação de Laura Vinci seduz e impulsiona para que nossa presença reaja. Enfim, corpo e obra estão acesos e interrelacionados nesse Triz que agora se apresenta, um jogo contínuo de transformação. 


(1) Verso da canção “Beatriz”, de Chico Buarque e Edu Lobo. A versão de maior apreço de público e crítica é a gravada no disco “O Grande Circo Místico” (1983), interpretada por Milton Nascimento.
(2)  O termo aparece em conversa documentada entre Laura Vinci e Marta Bogéa, presente na publicação da artista intitulada “Teatro das Matérias”.

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