JOSÉ RESENDE | NOTAS DE RODAPÉ: AMILCAR, LYGIA E WEISSMANN




JOSÉ RESENDE | NOTAS DE RODAPÉ: AMILCAR, LYGIA E WEISSMANN


galeria marcelo guarnieri | são paulo

abertura
18 de março, 2023
10h-17h

período de visitação
18 de março – 06 de maio, 2023



Alameda Franca, 1054
São Paulo – Brasil
[ mapa ]



José Resende: verbo – silêncio vivo
por Diego Matos

A escultura que faço é uma pesquisa da origem da própria escultura por isso é simples, descobre a força do que é original. Sol de muito tempo entre noites dormindo acorda e ilumina e ascende e é força e é fogo e é ferro. Verbo – silêncio vivo.(1)
Amilcar de Castro

A prática escultórica na arte brasileira tem uma rota de espaço-tempo muito clara, excedendo-se em força e presença, matéria e elegância, desde a segunda metade do século XX. José Resende (São Paulo, 1945) é personagem incontornável desse processo histórico. No silêncio da palavra, é um artista que nos coloca inconteste na fronteira da arte hoje; do gesto mínimo e de força precisa sobre a matéria, chega na escultura que atrai e repele o corpo de quem a percebe e a arquitetura que a acolhe. É nesse campo de atuação que o trabalho do artista ganha sua condição pública.

Para esta nova ocasião expositiva – ambiente que dá vida ao trabalho -, o artista escolhe precisamente um ponto projetual deflagratório: eleger um material e dele desdobrar, construir e reconstruir espaços. A chapa de metal crua em padrão da indústria é a unidade fundamental escolhida para o projeto da série Notas de Rodapé. É dele que o artista trabalha a geometria plana e descritiva, inscrevendo um círculo no centro das medianas de um retângulo de aço corten de 1,5m por 2.25m. A partir dessa composição de duas geometrias simples, são traçadas retas perpendiculares que esquadrinham a peça em quatro partes integradas entre o círculo e o retângulo e que, por sua vez, se subdividem em 4 quadrantes do círculo inscrito e 4 quadrantes do retângulo externo. Em um exercício sistemático de desenho geométrico, escolhem-se tangentes, secantes e ângulos que definem os lugares de intervenção. São linhas por onde acontecem os cortes, as dobras, as torções ou inversões. Desse sistema compositivo em que o material é integralmente utilizado, derivam 11 grandes esculturas, agora organizadas no horizonte longitudinal da galeria.(2)

Estudar, eleger, raciocinar, desenhar, compor, projetar e porcionar. Forçar, cortar, dobrar, inverter, experimentar, formular e equilibrar. Dar vida escultórica às peças criadas, gerar coreografias, fazê-las atuar em conjunto ou isoladas: essas são as ações verbais que silenciosamente dão protagonismo às notas de Resende. São esculturas mais totêmicas ou mais oblíquas. Algumas mais horizontais, outras mais verticais. Uma sugere horizonte, outra ascensão. E elas seguem a mudar de sentido à medida em que são percebidas a partir dos mais variados pontos de vista. Como pontuou a crítica de arte Luisa Duarte, o artista nos convida a ultrapassar a percepção retiniana para então “nos engajarmos de corpo inteiro”(3). É o que percebemos como o próprio “verbo – silêncio vivo” de Amilcar de Castro.

Da mesma maneira que guardam em si uma dimensão corpórea quando da interação e convívio com o público, os trabalhos do artista espelham algo que o crítico Ronaldo Brito nomeou de um “elogio à contingência”, característica que coloca a obra aberta ao imprevisível ou imponderável. Como é contingencial, o que decerto esteve na revolução neoconcreta da arte brasileira, a obra de arte ganha caráter temporal que a transforma permanentemente; uma espécie de força integradora e mobilizadora do lugar e do espectador. 

Ao meu ver, a produção de José Resende nunca é um exercício reflexivo de adequação e conforto. É muito mais uma experiência de confronto e indagação. E isso só é possível pela compreensão acurada do sentido e do valor da escultura. Há, por parte do artista, uma prática que eu gostaria de chamar, portanto, de “integradora”. Isso me faz puxar um fio de meada que remonta ao seu texto seminal “A Ausência da Escultura”, escrito em meados dos anos 1970, em que ele sentencia: “é, pois, na unicidade da produção/distribuição que se deve verificar a práxis do artista, e não na fragmentação dela”(4). Trata-se de uma lição de lucidez que me parece coabitar em sua atuação por mais de cinco décadas. 

O artista é da geração que mesmo diante da brutal ditadura civil-militar brasileira e da fragilidade dos circuitos institucional e mercadológico, mantivera no centro de suas motivações a construção de uma plataforma ética e estética de pesquisa e atuação. Foi uma preocupação que mobilizou a produção dos mais diversos artistas brasileiros no alvorecer do contemporâneo brasileiro, em especial dos que se reuniram na organização das publicações “Malasartes” e “A Parte do Fogo”.

Apesar de ter a origem ou a fonte de sua pesquisa no campo civilizatório do construtivismo do início do século XX, José Resende não é apenas um tributário dessa tradição forjada, mas um escultor que, não sem ironia, requalifica e problematiza esse mesmo fazer construtivo de maneira limítrofe, tensionando de maneira engenhosa as razões do mundo construído e codificado. De modo amplificado, o artista nunca teve problema com o desconforto, a presença da força ou eventual peso ou desequilíbrio das coisas: é esse destemor elegante que faz de sua obra um posicionamento radical inscrito na urgência do presente. 

Notas de rodapé, da arquitetura à escrita

Em seu já histórico texto “Weight/Peso”(5), o artista norte-americano Richard Serra (São Francisco, EUA, 1939), tratou a história da escultura como análoga a história do signo do peso e da força da gravidade. Digo, entretanto, que José Resende foi além, seja pela coragem com que trabalhou os mais variados materiais em sua produção seja por uma percepção aguda do espaço social no qual sua obra habita. Neste duplo esforço, ele trouxe consigo também uma consciência histórica, o que, em certo sentido, motivou o protagonismo dado às suas notas de rodapé, intitulando a mostra de Notas de Rodapé: Amilcar, Lygia e Weissmann.

Ironicamente, a própria ideia de um rodapé, elemento arquitetônico que margeia, inscreve e delimita o espaço arquitetônico de um ambiente, perde sua função ou necessidade inicial, pois a organização das esculturas na sala expositiva e a escala de cada uma delas no espaço formulam lugares que precedem a necessidade desse artifício de contenção. O chão, as paredes e a face de vidro da galeria são as peles que delimitam essas presenças escultóricas. São elas que criam o horizonte da nossa vista e definem os caminhos e os usos dos espaços. Também, é importante notar que a disposição das obras abre uma nova consciência para o contexto, ao promover a invasão do espaço expositivo privado da galeria pelo ambiente externo da vida pública. Torna-se impossível não perceber a presença das obras desde a rua.

Em contexto acadêmico, Umberto Eco – filósofo, ensaísta e professor italiano – teve a proeza de escrever um livro que explica de maneira clara e nada enfadonha como se faz uma tese. Nele, distingue-se a importância ou o excesso das notas de rodapé. O autor explicita que a nota, quando usada em justa medida, é elemento de valor. Fazendo-se a devida analogia, me parece pertinente sublinhar o valor da nota como algo que se amálgama ao próprio conceito da obra de Resende nessa exposição.

É curioso que o trabalho do artista nos aponte com constância para um lugar dessa mesma justa medida. Só que agora revelada pela ancoragem histórica que seu aporte escultural faz uso: o pensamento e a produção poética de três nomes precípuos da arte feita no Brasil, a partir da segunda metade do século XX. Trata-se da tríade: Amilcar de Castro (Paraisópolis, MG, 1920-2002), Lygia Clark (Belo Horizonte, MG, 1920-1988) e Franz Weissmann (Knittelfeld, Áustria, 1911-2005).

É dessa triangular geometria poética que o artista constrói sua ação no espaço agora. No polo oposto à ilustração de um modelo ou a sua citação, o que o artista nos coloca como experiência de espaço e vivência, onde a presença do corpo nunca está incólume, é o da presença ativa da escultura, de seu peso e de sua física, de sua matéria e de seus vazios.

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(1) Trecho de depoimento do artista Amilcar de Castro, publicado no livro-catálogo de referência “Projeto Construtivo Brasileiro na Arte”, organizado pela crítica e curadora Aracy Amaral, em 1977. Nela estão também trechos de depoimentos da Lygia Clark e do Franz Weissman. Como bem adensa e reflete o José Resende, este trio de artistas contribuiu para deflagrar a transição do moderno ao contemporâneo na arte produzida no Brasil, especialmente o lugar da escultura como origem, linguagem e forma.
(2)
Para uma compreensão, ao mesmo tempo racional e lúdica, vale ver o material impresso em papel onde fica clarividente o exercício matemático, projetual e espacial que o artista nos convida a perceber no espaço expositivo. Ao lado desse texto, vale ter consigo os papéis destacáveis que levam para a escala da maquete o gesto verbal e de ação do artista.
(3) Leitura crítica realizada pela curadora Luisa Duarte por ocasião da exposição “José Resende: na membrana do mundo”, Fundação Iberê Camargo (2021).
(4) O ensaio “A Ausência da Escultura” foi primeiramente publicado na revista Malasartes 3 (abr./ mai./ jun., 1976) – publicação da qual José Resende era um dos editores.
(5) A versão original do texto em inglês, encontra-se na publicação: SERRA, Richard. Richard Serra: Writings/Interviews. Chicago: Chicago University Press, 1994, p. 183.

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