FLÁVIA RIBEIRO – CONTINUUM



FLÁVIA RIBEIRO – CONTINUUM
curadoria Henrique Xavier


galeria marcelo guarnieri | são paulo

período de visitação
22.05 – 10.07.2021

A exposição poderá ser visitada mediante agendamento, de segunda a sexta das 10h às 19h e aos sábados das 10h às 17h. Para agendar, pedimos que entre em contato por email (info@galeriamarceloguarnieri.com.br), telefone (11 3063 5410) ou Whatsapp (11 96858-9005), informando nome completo e indicando o dia e horário de sua visita. Para sua segurança, vale reforçarmos o uso obrigatório de máscara durante todo o tempo que estiver na galeria.


Alameda Lorena, 1835
São Paulo – Brasil
[ mapa ]


Perder-se em Continuum
por Henrique P. Xavier

 

Carmesim, o vermelho carmesim é pendurado por três longos ganchos negros. O vermelho, ou melhor, o carmesim, cobre três formas finas e incomuns que estão presas por ganchos a uma estrutura geométrica ortogonal composta por linhas negras. Dois volumes geométricos esvaziados erguem-se. O primeiro, um paralelepípedo regular com a altura aproximada de um ser humano, porta em seu interior as delgadas formas na cor avermelhada que lembram algo tão estranho como improváveis “ossos de borboleta”, chamemos tais inusitadas formas de esqueletos carmesim. Já o segundo volume é um pouco mais baixo, não muito. As arestas destes dois paralelepípedos formam vazios tridimensionais que são contornados, ou melhor, desenhados por delicadas embora fortes e gestuais linhas negras. Entre os dois vazios geométricos, há uma longa placa negra e sólida que, situada por volta de uns dois palmos do chão, faz a vez de uma ponte, ligando os vazios. Do centro do segundo paralelepípedo esvaziado, pende uma linha de arame que atravessa uma longa sequência de irregulares esferas negras as quais se apoiam e avolumam-se sobre outra placa que apresenta as mesmas características da primeira, estando posicionada na mesma altura que a anterior sobre as arestas de um terceiro vazio geométrico o qual não se ergue, mas deitado se esconde sob essa segunda sólida placa. Parte das irregulares esferas ora lembram enormes pérolas deformadas, ora lembram polígonos de muitos lados ou talvez seixos lascados, variando em tamanho ao longo do arame de um modo crescente e decrescente. Nestas irregulares esferas negras pode-se entrever pequenos detalhes dourados, como se do interior do negro houvesse algo brilhante, reluzente como ouro. Junto às esferas irregulares, aumentando a curiosidade, alguns poucos copos vazios, perfeitamente lisos e negros, também, estão acoplados ao arame. À frente das esferas há uma terceira placa negra um tanto menor que as duas anteriores, ela está elevada por volta de uns cinco centímetros acima do chão e  completa o peculiar desenho da grande escultura em bronze de Flávia Ribeiro.  

Uma peça tridimensional estranhamente bela cuja complexa experiência estética é um convite que desafia a compreensão. Diante dela, como dar conta deste expressivo e misterioso convite? Poderíamos recorrer à gestualidade negra das densas e enigmáticas figuras em bronze de Maria Martins e Alberto Giacometti ou recorrer à dramática psique atormentada e erotizada das esculturas de Louise Bourgeois e Tunga, por outro lado, também podemos pensar nas insólitas geometrias em que estão enganchados os expressivos nacos de carne de Francis Bacon ou nos planos e geometrias postos em questão por Waltercio Caldas. Aproximações a renomadas obras de arte são sempre úteis, comparações a nos trazer a ilusão de certo domínio de um repertório estético quiçá entendido. O  feito certamente ajudaria o espectador a se localizar diante da desconcertante e bela peça, porém o desenho formado pela obra mais as referências insiste em não se fechar. Muito pelo contrário, por meio de tal atitude corremos o risco de nos perdermos da singularidade e da sutil delicadeza que constituem a obra de Ribeiro. Talvez uma alternativa bem mais fecunda para nos aprofundarmos neste desafio seja aproximar a peça negra e tridimensional às demais obras da artista presentes em sua exposição individual intitulada Continuum que se encontra na Galeria Marcelo Guarnieri. 

Escrito em latim, continuum remete a um conceito da Teoria da Relatividade de Albert Einstein em que o espaço tridimensional se funde ao tempo e vice-versa, algo que foi poeticamente traduzido por um romancista como a mistura entre “três partes de espaço e uma de tempo”. Não entraremos nas complexidades teórica e matemática da física moderna que extrapolam o horizonte estético da misteriosa peça tridimensional e da própria exposição, contudo, nos valeremos de maneira poética de uma ideia proveniente do conceito de continuum. A ideia de que, embora cada fenômeno possua uma temporalidade interna própria e singular, quando um fenômeno se aproxima de outro, eles fisicamente e de maneira recíproca irão distorcer a geometria do espaço-tempo ao seu redor, nem o espaço-tempo de um, nem o espaço-tempo de outro irão permanecer iguais. Inspirados por essa ideia, esboçaremos uma interpretação em que ao aproximar as obras da exposição, estas não apenas explicitarão suas semelhanças, mas, talvez, em um continuum, elas principalmente poderão interferir, ou melhor, deformar reciprocamente os seus sentidos. Talvez, assim, por meio de deformações recíprocas de sentidos consigamos adentrar nos desafios que a inusitada obra e a exposição nos convidam. 

I
Assim como a geometria esvaziada é constituinte da grande escultura negra, a exposição como um todo é atravessada por manipulações sensíveis da geometria em suas relações com planos virtuais, concretos e mesmo simbólicos. A primeira sala que abre a exposição porta dois objetos geométricos enigmáticos. Ambas peças são de cor negra e possuem uma forma muito similar, caso não venham a ter a mesma forma. Uma das peças está literalmente sendo manipulada no interior de uma imagem fotográfica tão negra quanto a própria peça. Na quase completa escuridão da imagem podemos nitidamente ver dedos de duas mãos que seguram a também nítida peça: um volume negro cujo vazio é contornado por seis pequenas paredes. Aquilo que chamamos de geometria nas obras de Flávia Ribeiro vai na contramão de uma geometria idealizada ou matematizada, pois são peças, planos e linhas que possuem uma materialidade vibrante e expressiva, contendo pequenos gestos, saliências e perturbações. Raramente há uma superfície lisa nas geometrias negras da exposição. O próprio negro profundo que cobre a imagem fotográfica não é uma cor lisa, por meio de um olhar mais detido podemos distinguir na escuridão o contorno do corpo cujas mãos seguram a peça. Um corpo vestido de um negro quase absoluto que, ao que tudo indica, nos dá as costas, pois percebemos o leve brilho do negro cabelo que se dilui na escuridão e cobre a nuca da figura que está a nossa frente. Com um olhar ainda mais cauteloso, podemos entrever na escuridão as sutilíssimas dobras negras do tecido que veste o corpo, negro sobre negro, dobras ao limite da visibilidade. Eis que a imagem, como um todo, se sustenta no vazio: o vazio central que forma a peça negra e a quase completa escuridão a esvaziar a figura. É a imagem, também, como um todo que  nos dá as costas: um vazio ao olhar.

Nosso objetivo não será nos determos com tamanho detalhe em todas as obras da exposição, por volta de quarenta peças, faremos isso apenas em algumas poucas obras que nos servirão como precisos desvios para, indiretamente, nos perdermos nos desafios provenientes da grande escultura em bronze negro e da exposição em geral. Contudo, neste processo, também, deslizaremos rapidamente por um número significativo de outras obras de Continuum

Há uma segunda obra que se encontra nesta mesma sala, ela apresenta o mesmo formato da vazia peça segurada pela imagem fotográfica, mas em uma escala um pouco maior e disposta sobre uma base. É uma peça de bronze, também, recoberta pela cor negra. Contudo, o seu vazio vem a ser ocupado por planos dobrados que secionam o espaço interno da obra, nos dando a ver formas que lembram a disposição arquitetônica das paredes de uma residência. De fato, a obra possui o título de A casa e conhecendo o seu nome passamos a enxergar uma curiosa espécie de maquete negra. Entre os negros planos dobrados, há um reluzente plano dourado que faz o vazio negro desdobrar-se dele mesmo. 

O fato da maquete da casa possuir o mesmo formato da peça que se encontra nas mãos da imagem fotográfica nos leva a perguntar acerca da relação entre ambas. Aqueles que conhecem a casa de Flavia Ribeiro sabem que o segundo andar de sua residência é constituído por um único e vasto ambiente vazio que é preenchido pela artista com a produção de suas obras, o vazio é o seu ateliê e o ateliê é uma dobra e um duplo da casa. Voltando mais uma vez para a imagem fotográfica, o seu título vem a ser Duplo Figurado, ela apresenta um corpo humano coberto de negro que nos dá as costas e segura este vazio que agora nós relacionamos ao ateliê da artista. Talvez possamos pensar neste corpo negro como um duplo da própria artista? Mas a sua estranha objetividade enquanto imagem, que em meio ao negro se perde e se despersonifica no limite do visível, parece oferecer-se mais a nós enquanto um duplo daquele que observa a própria obra, um duplo de nós mesmos que lentamente nos esforçamos a manipulá-la por meio de nosso próprio olhar. Por outro lado, a insistência do fato de A casa se confundir com o ateliê de Ribeiro, também faz com que nos perguntemos se talvez todas as obras da exposição, mesmo as mais abstratas e insólitas não são uma espécie de seus duplos, mas duplos que curiosamente se perderam da matéria e forma singulares que personificam a artista.

II
Na segunda sala da exposição, colocado sobre uma longa bancada, há um plano de parafina que se torna a base de campo de pensamento, ou melhor, um campo para pensar. Da casa que se apresentou como uma espécie de obra-maquete, temos, agora, sobre este campo, uma espécie de miniatura de uma exposição que contém em escala diminuta possíveis esculturas que bem poderiam ocupar a sala grande da galeria. Temos inclusive uma circunstância bem similar à grande estrutura negra com seus esqueletos carmesim, as fortes arestas negras do paralelepípedo são, agora, desenhadas por delicadíssimos fios de arame e cobre que, manualmente retorcidos, estão fincados na superfície de parafina. Também os longos ganchos negros que na grande escultura prendem os esqueletos carmesim se encontram nesta delicada geometria de arames, eis que um pequenino gancho é desenhado por meio de plaquinha de metal dobrada. São nove as mínimas e delicadas esculturas fincadas neste campo. Contudo, não se trata da maquete de um espaço ou exposição existente, ou mesmo de um projeto por vir, mas sim da maquete das próprias ideias em si da artista. A materialidade experimental das ideias é dada pela maleabilidade da parafina, dos arames, fios de cobre, linhas carmesim e um retalho de organza de seda que permitem a constante transformação de um work in progress, como um perpétuo campo de experiência de pensamento. Na mesma bancada ao lado deste sutil campo ou plano de pensamento, há uma placa de bronze que porta cinco planos negros dobrados, intitulada de Planinhos; agora, o próprio plano se torna o assunto da obra. 

Veremos nesta mesma sala o plano tomar corpo, uma longa chapa de bronze, negra, retangular e com a altura aproximada de um ser humano é apoiada na parede. Você nota que a placa de bronze possui exatamente a mesma forma retangular que a imagem fotográfica da primeira sala. Então percebe que saímos do plano da representação presente na imagem fotográfica que foi esvaziado pelo profundo negro, passamos para um plano de pensamento, então os planinhos dobrados se tonaram o centro de uma obra e, agora, a parede da galeria escora um longo plano negro de bronze. Tudo ocorre como se aquele corpo vazio da imagem fotográfica – que nos dava as costas ao limite da visibilidade – chegasse ao grau zero da representação, desprovido de qualquer traço antropomórfico ou figurativo, tornando-se pura matéria. Aos pés da placa negra, a cor amarela se espalha em um tapete retangular feito de um veludo que brinca com a luz que lhe incide, um pouco como aquele plano dourado que brilhava no interior de A casa. 

      

 

 

 

 

FLÁVIA RIBEIRO – CONTINUUM
curated by Henrique Xavier


galeria marcelo guarnieri | são paulo

exhibition
May 22 – July 10, 2021

 

 

O próximo plano esteticamente empregado pela artista vem a ser as próprias paredes da galeria. Uma quina da sala é atravessada, um pouco acima da altura de nossas cabeças, por um vergalhão de ferro do qual longos ganchos negros seguram mais uma vez formas que em muito se assemelham aos esqueletos carmesim. Mas estes, agora, possuem uma cor marrom que os aproxima a galhos bifurcados, contudo, vêm receber o preciso nome de Esqueletos T. Na obra, o carmesim também é agarrado por estes ganchos negros, porém a cor está materializada na etérea e translúcida superfície de uma organza de seda que dependurada no ar, dobra-se sobre si mesma, vermelho sobre vermelho.

Em uma segunda parede desta mesma sala há um conjunto de nove desenhos onde podemos ver, sobretudo, a sensível geometria de Ribeiro dobrar-se para dentro de si. A sequência dos nove desenhos pode ser interpretada não tanto como uma série, mas como uma frase em que acompanhamos os movimentos da transformação interna desta geometria. Um movimento que se torna evidente em um pequeno livro composto por folhas translúcidas onde vemos os desenhos de planos dobrados se sobreporem por meio da  semitransparência das folhas, formando uma espécie de curioso palimpsesto de planos que dobram-se sobre planos. 

Destoando da geometria, no conjunto de nove desenhos, há uma imagem cuja  problemática se abre para uma estranha sobreposição tautológica entre figuração e cor carmesim. O vermelho carmesim, em sua tonalidade precisa, vem a ser uma das principais cores a pontuar e atravessar toda a exposição. Este desenho possui para nós um sentido tautológico, pois a cor é apresentada cobrindo quatro figuras que ressoam a insetos e estes pequenos vermes curiosamente remontam à longínqua origem do próprio carmesim. 

Minerais a parte, o primeiro e verdadeiro pigmento carmesim, sendo responsável por um dos corantes mais raros e especiais conhecidos na antiguidade, era produzido a partir do corpo de insetos mortificados. Um corante que desafiou as forças destrutivas da luz, temperatura, umidade e tempo, sendo proveniente do oriente árabe e tendo conquistado a Grécia e a Roma antigas. A própria Bíblia menciona que os descendentes de Noé usavam roupas coloridas por um corante vermelho feito a partir de um inseto, este pequeno artrópode que modernamente é conhecido por nós com o nome de Kermes vermilio. A própria palavra vermelho deriva da antiga palavra francesa “vermeillon” que provém do latim “vermiculus”, o diminutivo da palavra latina “vermis”, ou seja, “verme” que remonta ao processo original de obtenção do corante carmesim proveniente do Kermes vermilio que desde tempos imemoriais foi tomado por um verme, vermilio. Apenas o corpo mortificado das fêmeas vermilio são usadas para extrair o pigmento. Somente  com a descoberta das Américas o Kermes e a fórmula do carmesim vieram perder sua hegemonia no panteão das cores com a entrada de sua prima, a artrópode cochonilha sul-americana, da qual se extrai a cor do pigmento carmim de uma forma muito mais barata.

O que aprendemos sobre a arte de Flavia Ribeiro a partir desta divagação sobre os mortificados insetos carmesim? Talvez um caminho para compreender como a precisa escolha das poucas cores empregadas pela artista possui uma longa e rica história. O carmesim, um tom peculiar de azul esverdeado, certo amarelo e o dourado que se encontram no conjunto dos nove desenhos e, também espalhados pela exposição, possuem em comum o curioso fato de historicamente se encontrarem presentes em manuscritos medievais, sobretudo nas iluminuras de textos de origem religiosa cristã. São cores que ainda hoje preservam o seu frescor original em manuscritos de épocas remotas. A escolha cromática da artista nos aponta para a sobrevivência de tempos antigos: um reluzente dourado, o vermelho mortificado e este leve azul infinito. Somadas a essas três, ainda acrescentaria as duas não cores: o intenso negro que tudo devora em escuridão e a sutil particularidade do translúcido, este não matiz que se dá entre presença e ausência, entre o visível e o invisível, empregado em abundância pela artista como um véu, ou melhor, uma velatura de delicadeza. 

III
Se com os nove desenhos tínhamos uma frase da artista, na terceira sala podemos dizer que temos diante de nós um conto muito especial. Assim como o campo para pensar trouxe as ideias estéticas de Flávia, agora, ocupando a extensão completa da maior parede da galeria, vemos uma espécie de alfabeto de sua criação figurado em 99 desenhos que flutuam nas superfícies de translúcidas folhas, apresentando inúmeras formas negras, geometrias, círculos, ganchos, formas abstratas, as irregulares pérolas negras, os seixos partidos, superfícies de cor, o carmesim, o azul, o dourado, o amarelo, o negro, muitos gestos gráficos, esqueletos vermelhos, pequenos insetos, pedaços de plantas, galhos e muitos fragmentos e variações de suas esculturas. Temos a longa parede de ponta a ponta preenchida pelos 99 desenhos que em si são uma potente e belíssima obra de dimensão arquitetônica e, ao mesmo tempo, uma delicada e múltipla grafia que nos permite ler, em profundidade e com grande frescor, o pensamento e o processo de criação da artista. 

Finalmente, estamos de volta na terceira sala onde se encontra a grande escultura negra com a qual abrimos as divagações de nosso texto. Acompanhando a grande escultura, há, na sala, mais duas obras que parecem ser de sua mesma série, compostas também por arestas negras de bronze que desenham paralelepípedos geométricos esvaziados os quais possuem em seus interiores objetos cujos volumes se contrapõem à ortogonal geometria que os cerca. 

Uma das estruturas negras apresenta em seu interior uma enxurrada, ou melhor, um volumoso cacho de copos negros entremeado por alguns copos dourados. A contraposição entre a luz dourada e o turvo negro se faz evidente na perfeição da cópia entre copos tirados de um mesmo molde. A diferença entre eles não se dá apenas entre luz e sombra, mas entre interioridade e superfície, pois todas as esculturas de bronze da exposição, se descascadas de sua pátina negra e se bem polidas, tornam reluzentes como o ouro. O dourado se encontra por dentro da escuridão, ou melhor, foi coberto pela escuridão. E, na contramão disto, em algumas peças o próprio dourado do bronze é literalmente recoberto por ouro, redobrando luz na luz.

No interior da outra peça tridimensional negra, vemos presa por ganchos a própria duplicação da estrutura externa, mais uma vez a geometria dobra-se para dentro de si e no interior desta nova estrutura um plano de bronze maciço sustenta o vazio de um copo negro. Além disto, a cor azul esverdeada, também, está dependurada no interior da peça. Nas três esculturas formadas pelas negras arestas dos paralelepípedos, percebemos como a coesão e o controle geométricos são contrapostos por estes estranhos objetos internos que parecem duvidar da estabilidade da ordem ortogonal.

Na outra extensa parede da galeria que se contrapõe aos 99 desenhos, há uma série de obras em que variações dos objetos que se encontram no interior das esculturas e alguns novos – copos, pequenos vasos, esferas, placas de cor, organzas translúcidas e um veludo negro – estão dependurados em pregos por longos fios de cobre, alumínio e estanho. São obras que se situam entre o bi e o tridimensional, literalmente, por um fio. A série é entreposta por duas estranhas pausas: uma pequena gravura negra que apresenta uma grade composta por nano linhas avermelhadas; e um grande campo geométrico virtual e duplicado que está em paralelo a três centímetros da parede, desenhado por linhas de costura da cor carmesim e por tensos fios de cobre que reluzem o metal.

De obras penduradas, passamos para duas esculturas que lidam com o plano baixo. Ambas em bronze e compostas por elementos ortogonais, mas diferentes da série de três esculturas contendo paralelepípedos vazados. O bronze nestas duas obras está mais concentrado, são obras mais sólidas, bem menores e que dialogam com o chão. 

Uma delas, intitulada torrinha, apresenta sete pequenas placas de bronze negro que são empilhadas desde o chão e contém três furos atravessando o conjunto. Contudo, as placas não estão coladas umas nas outras, seus quatro pés as colocam levemente distantes umas das outras, como se fossem sete insetos geométricos, um sobre as costas do outro. A forma ereta do conjunto, embora baixa, lembra os ossos de uma coluna vertebral e suas três perfurações ressoam a canais de uma ausente medula óssea. Como a coluna que sustenta um corpo humano, essa obra dada a partir do chão, em sua incomum e negra densidade, vem sustentar o espaço ao seu redor. A obra, uma pequena torre óssea, definitivamente a menor entre as cinco esculturas na sala, é a que mais se impõe, a que mais modifica e sustenta o próprio espaço da exposição.     

A outra obra intitulada Caixa morte/a noiva também lida com o chão,  inclusive traz três translúcidos tecidos de organza de seda branca que sobrepostos formam um ondulante tapete branco, uma espécie de véu estendido no chão sobre o qual a caixa se encontra. Uma caixa morte, contendo também três perfurações a atravessá-la, vem formar uma espécie de redução geométrica de uma caixa-crânio, uma caixa quase, mas não quadrada. Um terceiro elemento completa a geometria da obra, uma frase manualmente escrita em vermelho carmesim na extremidade da translúcida organza branca: quando me perder do meu corpo, quando nele me acabar, será uma despedida fugaz e incrédula da matéria que me personificou.

 Morte, sim, a permanente morte da estabilidade da matéria, da matéria cuja estanque forma personifica um corpo e produz a cristalização de uma identidade. Perder-se de si justo no instante do próprio encontro, não é esta a experiência estética que nos persegue durante toda a exposição?  Desde o duplo figurado cuja imagem se dilui em profundas sombras, passando por geometrias que dobram-se desde dentro, e dobras que se tornam planos e planos que se tornam corpos, desenhos que assumem o papel de uma parede, uma parede que se torna um alfabeto de ideias e a imaterialidade de ideias que vem a ser fincada em um plano de parafina, cores que atravessam tempos, tempos mortificados, esqueletos, se quer a caixa para a morte é exatamente quadrada, a sua geometria e as demais da exposição estão sempre  distorcidas. O negro que atravessa e se espalha por toda exposição não é o do luto que paralisa o tempo, mas o negro capaz de diluir os limites das formas. Um negro que também é carmesim, um negro que dentro de si é ouro, o negro de uma circunstância ímpar que jamais se resolve. Este negro capaz de fundir a imobilidade do espaço ao próprio tempo e vice-versa: o Continuum de uma arte que descansa ao se movimentar e se encontra ao perder-se em estranhamento.  

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