Claudio Tozzi | Imagem Construída



Claudio Tozzi | Imagem Construída


galeria marcelo guarnieri | ribeirão preto

abertura
23 de março, 2024
15h-18h

período de visitação
23 de março – 25 de maio, 2024



rua nélio guimarães, 1290
ribeirão preto – sp – brasil / 14025 290
[ mapa ]




O permanente trânsito visual de Claudio Tozzi

por Diego Matos, março de 2024

A cor
a pensa a cor
a cor da cor
se transparenta
e é luz

pensar a luz
a luz da luz
se fragmenta e é cor

a palavra cor
na cor
a palavra luz
na luz

Haroldo de Campos (1)



Contexto histórico: pontos de largada

Desde meados dos anos 1960, Claudio Tozzi (São Paulo, 1944) tem produzido uma caminhada reflexiva e subversiva sobre o poder da imagem construída – suas ambiguidades, seus valores e seus signos –, em um trânsito visual permanente percorrendo do espaço privado ao espaço público e vice-versa. Nesses espaços em que atuam, portanto, fazem de todas essas imagens e paisagens urbanas, trabalhos que carregam um âmago político irrefutável. E não falo aqui de uma literalidade política ou mesmo panfletária, mas de uma presentificação intrínseca e comprometida eticamente por quem vive de forma continuada as circunstâncias de seu tempo, respondendo invariavelmente ao mundo que o circunscreve. Isso, por sua vez, é algo inato ao seu lugar de professor que durante quatro décadas colaborou na formação em arquitetura e urbanismo de estudantes da FAU USP.

Aliás, foi nos anos de FAU que Tozzi construiu seu compromisso ético como artista, sob a batuta de duas figuras basilares da cultura paulistana e brasileira: Flávio Império e Sérgio Ferro, dois nomes subestimados em nossa história social. Consciência política, olho para a realidade brasileira e fervor vanguardista estiveram alicerçados em sua trajetória artística e na sua prática docente. E foi na vida de bairro, e em seu ambiente acadêmico, que o artista encontrou as mais variadas formas de interlocução. Para ficarmos em um exemplo dessa riqueza dialógica, basta lembrar de Luiz Paulo Baravelli, com quem entrou junto na FAU USP, em 1964, ano do tenebroso golpe militar que agora em 2024 completa 60 anos. Ambos atuaram em proximidade nos primeiros anos de suas práticas artísticas, em meados dos anos 1960, participando de um circuito artístico de natureza urbana, entre a boêmia, a academia e o movimento estudantil.

Como escreveu Ferro, “Apesar de Médici” (2), nos anos de chumbo, Tozzi foi capaz de seguir numa atuação como artista que em momento algum renunciava à experimentação e ao risco, mesmo que isso pudesse custar algum sucesso comercial, ou mesmo noites tranquilas de sono diante da repressão e da censura. Por conseguinte, esse compromisso ético é constantemente renovado ao longo de seu percurso de trabalho: basta atentar para sua nova série de composições escalonadas em que estampa a frase “é necessário que o capital não exceda a poesia”.

No nosso entender, diante de uma consciência ancorada no materialismo histórico que sempre definiu o pensamento progressista, há um lugar de imponderabilidade da arte que deve permanecer livre, aberto e com forte senso de contaminação. Essa série, portanto, vislumbra um novo caminho que vem sendo depurado pelo artista desde 2023, mas revigora o mesmo compromisso ético e vanguardista de anos anteriores.

Por isso, em seus primeiros anos de produção, ligado à dinâmica plástica da “Nova Figuração”, o artista soube aproveitar as estratégias formais da “Pop Art” para produzir um corpo de trabalhos capaz de reverberar os anos de turbulência do país em um contexto de urbanização irreversível. Ao contrário do que a crítica erroneamente associou ao pop americano e inglês, não interessava ao Tozzi, e aos seus pares, incorporar ou espelhar os elementos da sociedade de consumo, mas retratar o cotidiano do homem comum, o mundo ordinário que estava sob vigília, diante de um eminente conflito. É talvez esse momento de nossa história da arte que reside a plataforma poética primeira de sua prática artística que foi sendo sofisticada ao longo do tempo.

Pode-se dizer que a ideia de “reportagem subjetiva” estava impregnada no seio dessa produção. Importante, portanto, olhar com o devido cuidado para sua série Multidão, um interessante ponto de partida e de chegada em sua produção. Na ocasião, Claudio Tozzi fotografava todas as manifestações da sociedade civil naquele tempo, e se apropriava também das imagens produzidas pela imprensa. Munido dessa informação gráfica, construía painéis com alto valor de contraste que evocava esses movimentos da cidadania contemporânea.

Uma perspectiva conceitual e poética: vários pontos de chegada

É na artesania de suas imagens e composições que o artista elabora uma intrincada poética da cor, da forma e da pigmentação, sempre atento às várias tecnologias de reprodução em massa. Como o próprio artista costuma dizer, há uma síntese possível em sua obra dada pela associação do conceito duchampiano da apropriação à estrutura construtiva da forma. Em variação escalar, trata-se de um caleidoscópio pictórico que atravessou praticamente seis décadas de produção continuada.

Nesse caleidoscópio mutante, acredita-se que as imagens que o artista nos gera possuem uma real capacidade de transmutação dos seus signos. Para tal fim, retrabalha todos os elementos que compõem a imagem gráfica – impressa ou digital. Certa vez, nosso maior crítico em vida, o Frederico Morais, escreveu que Tozzi “trabalha com aquilo que constitui o subsolo da imagem – retícula e grão”. Para ele (e eu tendo a concordar), o artista faz uso de todos os manejos que um designer propõe, sem, no entanto, definir uma forma paralítica, que apenas registra ou sinaliza um momento. Grosso modo, nos trabalhos de Tozzi, uma multidão não é uma multidão qualquer, um Che Guevara não é só o Che, um astronauta não é só um circunstancial aventureiro do espaço, uma paisagem reticulada de uma cidade é muito mais que uma representação da cidade capturada, entre tantas outras construções derivativas possíveis.

E essa ideia sugerida de transmutação vai além: Morais, por exemplo, escreveu que o artista “não quer captar mais um instante fixo da paisagem urbana, seus edifícios, mas sugerir um dinamismo que a envolve por dentro, criar um símile para a trepidante e frenética atividade da grande cidade, na qual está imerso”. Essa sugestão de que temos uma obra em permanente trânsito faz com que o artista consiga ao longo dos anos depurar uma complexificação do potencial gráfico de um eventual trabalho.

Assim, a exposição que agora se anuncia constrói uma perspectiva generosa de sua produção, atentando para vários temas ou núcleos irradiadores de sua prática artística. Em primeiro lugar, as obras que aderiram à “Nova Figuração”; em seguida, o “Parafuso/signo”, com imagens mais enigmáticas que imprimiram uma riqueza visual e gráfica ao signo linguístico ilustrado. Também, temos em seguida, sua sofisticada pesquisa em que se triangulam três conceitos fundamentais – cor, pigmento e luz. Por isso, a importância conceitual e semântica do poema visual de Haroldo de Campos, representada na epígrafe desse texto e na sugestão de uma poética da cor. E já não menos importante, nos deparamos também no espaço expositivo com a riqueza que emana das relações entre território, arquitetura e cidade. São todos trabalhos que sugerem tramas urbanas, territórios poéticos e arquiteturas imaginárias: todos derivados de uma acurada observação da natureza do espaço da experiência.

Se de partida olhamos para suas figurações atemporais produzidas desde meados dos anos 1960 (e transformadas ao longo do tempo), temos uma precisão gráfica ancorada na história dos fatos e vivências da história brasileira recente. Mas há também, desde os anos 1970, a produção de um trabalho especular, de formas geométricas que ajudam a pensar a natureza do espaço da vida, eminentemente urbano: suas complexidades, tempos e sobreposições possíveis.

Com esse propósito, constatamos então uma insurreição da tridimensionalidade, criando-se estruturas perspectivadas, quase como cenas de acúmulo das cidades enquanto palimpsestos. Essas superfícies pictóricas não são apenas razões construtivas. São, na verdade, superfícies-áreas que transitam de uma sala de estar às fachadas de um edifício que se volta para cidade. Não obstante, antes, todas elas confabulam espaços de transitórios de passagens e escadas, ou seja, os espaços que fazem a cidade comunicar e conectar as pessoas que nela vivem.

Evoco, portanto, as próprias reflexões do artista-professor-arquiteto Claudio Tozzi. Para ele, o entendimento da cidade contemporânea se dá a partir da ideia de um espaço total e integrado que incorpora a própria noção de movimento, muito além de suas infraestruturas e abrigos. Para ele e para tanta gente, a cidade se constitui como um organismo vivo. E sua produção artística quer sobre ela comentar, subverter e olhar para o convívio e a negociação que ela está sempre nos oferecendo.

Desse jeito, a obra de Claudio Tozzi é profundamente democrática, pois nos entrega duas condicionantes que enraízam este sentido: a transmutação contínua dos signos que os trabalhos carregam, afetando um a um dos que os apreciam, e o caráter público da própria obra de arte que enseja um desejo de existir em condição e presença pública e coletiva. A comunicação da obra com quem a percebe é direta, perturbadora e transitória, assim como acontece na vida urbana contemporânea – entre encontros e desencontros, mediações e conflitos, lembranças e provisões de futuro. Ou seja, percebe-se que o legado de Tozzi é basilar na configuração de uma linguagem coletiva das cidades, especialmente de sua cidade natal São Paulo.

Aliás, por ocasião de sua exposição em Ribeirão Preto, vale também visitar a sede do SESI na cidade. Lá é possível ver a série de painéis elaborados a partir de todo o imaginário do astronauta e da corrida espacial que permeou especialmente a produção do artista no final dos anos 1960, e que segue até hoje em seu repertório gráfico. A obra de 1970 pode ser vista pelo público em visita ao local, permeando o imaginário de uma parcela considerável da população que frequenta aquele espaço institucional. Em certo sentido, essa mudança de escala do trabalho permite com que se entenda a magnitude transitória entre o público e o privado na trajetória do artista.


 

(1) Versos extraídos do poema visual “claudio tozzi: cor pigmento luz”, escrito quando da leitura crítica do poeta, crítico e ensaísta Haroldo de Campos no momento de transição do artista para sua produção de ordem mais conceitual que reunia a estrutura de signos cor-pigmento-luz, já em meados dos anos 1970. O poema foi publicado originalmente no livro “O universo em construção: 25 anos de Trabalho de Claudio Tozzi”, de Fábio Magalhães, em 1989.

(2) “Apesar de Médici” é o título de um texto que Sérgio Ferro produziu em homenagem ao Tozzi, e que faz alusão aos anos de horror daquele governo militar, responsável por aplicar todas as violências repressivas do AI-5. Ferro foi para o exílio nesse período e nunca mais voltou a residir no Brasil.

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