
Claudio Tozzi | É necessário que o capital não exceda a poesia
galeria marcelo guarnieri | são paulo
abertura
29 de março de 2025
11h-17h
período de visitação
29 de março – 30 de abril, 2025
A Galeria Marcelo Guarnieri apresenta, entre 29 de março e 30 de abril de 2025, “É necessário que o capital não exceda a poesia”, primeira mostra do artista Claudio Tozzi (São Paulo, 1944) em nossa unidade de São Paulo. A exposição reúne obras realizadas pelo artista entre 1968 e 2024, percorrendo mais de cinquenta anos de intensa produção, durante os quais refletiu sobre o poder da imagem construída em um trânsito visual entre o espaço público e o espaço privado. A mostra conta com texto crítico assinado pelo curador Diego Matos.
Claudio Tozzi iniciou sua produção artística no Brasil na década de 1960, realizando, através de uma aproximação à linguagem da Pop Art e ao programa da brasileira “Nova Figuração”, uma leitura crítica sobre a emergente cultura de consumo de massas que se integrava a uma Ditadura Militar recém-instaurada. Dedicava, nesses primeiros anos, uma especial atenção aos símbolos ligados à militância popular, como as imagens da multidão em protesto ou do rosto de Che Guevara, por exemplo. O parafuso, um objeto trivial dotado de uma forte carga política quando associado à classe operária, atravessa algumas décadas de sua produção, convertendo-se em um símbolo em si mesmo dentro de sua poética. Tozzi explora suas geometrias, suas qualidades escultóricas, sua função estrutural e sua capacidade, enquanto objeto perfurante, de articular o espaço-dentro ao espaço-fora.
Seu interesse pelas possibilidades técnicas e visuais da retícula, exploradas inicialmente por meio da serigrafia, foi se reconfigurando através de pinturas pontilhadas ou de obras como “Polution” (1973), na qual explorou o ponto como partícula na composição física da atmosfera. Ainda na década de 1970, dentro de suas investigações sobre estruturas compositivas, sobre a formação da imagem em processos de integração e desintegração, dedicou-se às relações entre luz, cor e pigmento. Em produções mais recentes, entre os anos de 2022 e 2024, explorou o caráter reticular do formato da grade através de composições geométricas serializadas que utilizavam-se de materiais tão diversos quanto a borracha e o nylon.
Como observa Diego Mattos no texto crítico que acompanha a exposição: “Tozzi nunca perdeu de vista uma perspectiva de futuro em que mantém de maneira resiliente a ideia: é necessário que o capital não exceda a poesia. Essa é talvez uma reflexão que funciona como âncora conceitual de sua produção e que foi apropriada no trabalho mais recente selecionado para a mostra. […] Desse modo, em um momento de grande sensibilidade aos impasses não resolvidos no passado como a discussão da lei de anistia e a luta por memória, verdade e justiça, as obras do artista ganham uma nova injeção de pertinência histórica e nos ajuda a pensar nas emergências reais do agora. Basta perceber, por exemplo, a profusão da imagem de astronautas representados das mais variadas formas em suas obras: uma figura heroica dos tempos da guerra fria e que segue como ideário na corrida espacial e na disputa de poder simbólico.
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Claudio Tozzi:
É necessário que o capital não exceda a poesia
por Diego Matos, março de 2025.
Um preâmbulo necessário
Apresentar a vasta produção artística de Claudio Tozzi (São Paulo, 1944) é promover um amplo sobrevoo por mais de seis décadas da arte contemporânea brasileira. Desse modo, a mostra produzida e organizada para o contexto da Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, joga luz sobre aspectos da poética e da prática do artista que vão muito além de suas obras vinculadas à nova figuração brasileira, por vezes tratada como uma manifestação de arte pop nacional.
Na exposição, é possível vislumbrar diversos caminhos de sua experimentação que reverberam até hoje, que o vincula de forma inquestionável à radicalidade da arte brasileira dos anos 1960 e 1970. Entretanto, Tozzi nunca perdeu de vista uma perspectiva de futuro, na qual mantém de maneira resiliente a ideia de que “é necessário que o capital não exceda a poesia”. Essa é talvez uma reflexão que funciona em amplitude como âncora conceitual de sua produção, e que foi apropriada em um de seus trabalhos mais recentes, obra inclusive presente nessa mostra.
Da ideia de sua arte como uma reportagem subjetiva nos anos 1960, formulada graficamente, às interferências e embaralhamentos de signos objetuais e gráficos da paisagem em construção nos anos de 1970 e 1980, o repertório de Tozzi nos entrega um farto aparato de compreensão das relações de capital e de poder que sustentam nossa condição político-urbana. O começo de sua jornada artística coincide com seus primeiros anos de estudante da FAU-USP, e da consolidação de seu primeiro ateliê em parceria com seus pares geracionais, momento de grande agitação política nos primeiros anos e, logo em seguida, de forte repressão, censura e terrorismo com a chegada da ditadura civil-militar brasileira em 1964. Sendo assim, não havia como a expressão contemporânea passar incólume aos fatos da realidade do país. Se hoje retomamos alguns temas de nossa história recente, façamos isso também olhando para a produção artística brasileira.
Há de fato, entre todos os seus pares, não só entre os que orbitaram o contexto da FAU, ou mesmo no circuito artístico paulistano, uma real consciência de classe e um interesse genuíno de pensar o Brasil em toda a sua magnitude, pavimentando um caminho de bases modernas e com claro interesse em transformações socioculturais. E parte dessa classe artística estava aliada à militância estudantil e aos demais movimentos sociais. Além disso, mesmo havendo uma clara separação entre as atividades cotidianas, uma contaminação real entre méritos podia acontecer.
Era quase que inevitável, por vezes, que uma tomada de posição ética e social demandasse um posicionamento tão político quanto estético. Tratava-se daquilo que Hélio Oiticica discorreu em seu texto seminal, Brasil Diarreia (1970), no qual avaliava a situação das artes no país. Escreveu ele, ao final do texto: “Não existe ‘arte experimental’, mas o experimental, que não só assume a ideia de modernidade e vanguarda, mas também a transformação radical no campo dos conceitos-valores vigentes: é algo que propõe transformações no comportamento-contexto, que deglute e dissolve a convi-conivência”. Por isso, parte considerável da produção do Tozzi que radicalizou a linguagem perpassa por esta abordagem clarividente de Oiticica. Na exposição, é possível reconhecê-la e entender sua abordagem sendo posta em prática ainda nos fins dos anos 1960, por meio do registro fotográfico e histórico da bandeira Guevara (1968) produzida pelo artista.
Sua exibição pública aconteceu no happening concebido e promovido pelo próprio Hélio Oiticica na Praça General Osório, zona sul do Rio de Janeiro, já em fevereiro de 1968. Tanto a sua bandeira como as de seus pares – Nelson Leirner, Flávio Motta, Carlos Scliar, Marcello Nitsche, Carlos Vergara, Rubens Gerchman, Glauco Rodrigues, Anna Maria Maiolino, Pietrina Checcacci, entre outros –, estavam dispostas em varais e nas árvores, numa ação orgânica e efêmera, o que incluía inclusive situações de performance e ativação destes dispositivos. Tratava-se de uma clara ação de distanciamento dos espaços institucionais e um abraço coletivo à liberdade em vida, entre festa e manifestação. Meses depois, o cerco se fecharia com a chegada do ato institucional de caráter mais violento e limitador, o AI-5. Curiosamente, tal condicionante político, de forte teor castrador e anti-civilizatório, contribuiu para um manejo ainda mais radical em nossa arte contemporânea com as mais diversas fissuras na linguagem e no circuito da própria arte.
Uma perspectiva histórica
Muito além do universo da arte, em tempos de novas reparações históricas, não há como dissociar o debate atual de nossa riqueza cultural. De modo geral, a produção plástica caminhou e caminha, em pari passu, com o nosso contínuo processo histórico e suas reverberações socioeconômicas e culturais. E Claudio Tozzi está inserido nesse processo. Sua obra, ao mesmo tempo em que explora os meandros da linguagem, é também documento histórico de uma passagem de tempo, fazendo até com que a crítica no passado a definisse com um valor de reportagem. Já falamos disso anteriormente.
Assim como muitos de seus pares, o artista foi vítima direta da estrutura do estado de exceção. Teve trabalho destruído e apreendido, sendo ele perseguido, interrogado e preso. De uma forma ou de outra, em sua atividade profissional, Tozzi nunca fez concessão: seja em sua docência por muitas décadas na FAU-USP, seja pela sua coerência, rigor ético e ideológico de sua produção. Como aluno do professor e artista Sérgio Ferro – hoje em dia um dos seus grandes amigos –, aprendeu a marca indelével da luta política que também se fez no campo estético. De uma tradição intelectual calcada no materialismo histórico e na radicalidade do ideário moderno em contexto brasileiro, ele construiu uma produção com forte preocupação espacial (o espaço da vivência e da experiência), em que sempre uniu à expressão gráfica e formal a realidade cultural do país.
Hoje, em um momento de grande sensibilidade aos impasses não resolvidos no passado como a discussão da lei da anistia, e a luta por memória e verdade, reparação e justiça. as obras do artista ganham uma nova injeção de pertinência histórica e nos ajuda a pensar nas emergências reais do agora. Entre título (texto) e obra (imagem e matéria), percebemos a escolha precisa de signos que nos contam um pouco da aventura humana contaminada pela vida cotidiana e cidadã. Neste quesito, a obra O retrato, de 1971, faz uma leitura interessante do significado do “olhar”, função cognitiva que se constrói muito além da fisicalidade dos cinco sentidos humanos.
Basta também perceber, por exemplo, a profusão da imagem de astronautas representados das mais variadas formas em suas obras: uma figura heroica dos tempos da Guerra Fria, e que segue como ideário humano na corrida espacial e na disputa de poder material e imaterial. Aliás, nos últimos tempos, quando vemos o retorno traumático de astronautas presos em uma estação espacial por vários meses, ou a dobrada de aposta na corrida espacial diante da iminente catástrofe climática, e a nova romantização da ideia de crescimento e expansão exponencial e infinita, além do rearmamento assustador pelo mundo, as obras com claro valor simbólico e semiótico como os trabalhos do artista ganham uma espécie de nova pertinência no presente histórico.
Outro questão importante é entender que suas iniciativas conceituais e práticas atravessaram seis décadas de nossa história, dando a possibilidade de se estar sempre sensível às transformações sociais e comportamentais. Para além de uma percepção poética, há sempre um desígnio ao qual o desenho ou o projeto procuram responder. Veja bem: não se trata do dado utilitário do design, mas uma intenção que extrapola a condição formal do trabalho. Há, em muitas dessas obras, uma preocupação em compreender e problematizar a própria natureza do espaço estabelecido pela arquitetura e pelo urbanismo, além de seus desdobramentos nas condições e características da cidade, o contato da arte com as noções de territorialidade, etc. Tudo isso, entretanto, está sob o guarda-chuva de um entendimento de relevo irredutível como o que é dado pelo título da mostra.
Alguns aportes plástico-poéticos
Cláudio Tozzi é responsável por uma poética da iconografia, toda ela cravada em seu tempo. Para tanto, tem como uma de suas iniciativas mais longevas as telas produzidas com apurado domínio de técnicas da reprodutibilidade em que examinava (e continua examinando) a ideia de multidão e o poder da coletividade como representação; no mais das vezes, após fotografar muitas das manifestações populares que frequentava. Desde então, o artista manteve em condição de importância três fatores plásticos: as cores, os pigmentos e o estudo da luz. Cada um desses fatores foi sendo depurados ao longo dos anos, junto com os personagens e objetos escolhidos para representar. Observem, por exemplo, que há um claro estudo compositivo dedicado diretamente a estes três elementos de análise plástica, a série Cor, Pigmento, Luz, produzida inicialmente em 1974.
De modo mais amplo, duas iniciativas se destacam nessa seleção de obras, tanto pela pouca visibilidade no panorama das exposições recentes como pela força expressiva dos signos que as compõem. A primeira delas é a representação do “parafuso” como elemento protagonista. São várias formas de apresentação, do desenho técnico à perspectiva, das cores às múltiplas sombras, entre outras. Todas, em certo sentido, incidem sobre uma razão pendular entre a precisão do contato, da fixação e da união à metáfora da violência em movimento e força. Esta percepção sofisticada da violência é resultado de uma leitura também traumática de quem de fato esteve sob domínio dos mecanismos de um estado de exceção. Curiosamente, é da mesma época a presença do elemento “prego”, signo recorrente da obra de seu colega Carlos Zílio, naqueles mesmos anos de 1970.
A segunda, também em destaque, é referente às “interferências” em que imagens se sobrepõem por meio da técnica serigráfica ou na sugestão de colagens. Nestes casos, há uma busca por apuro gráfico e uma radicalidade na sobreposição de signos que nos causam ruído e estranhamento. Há uma confusão imposta propositadamente na definição de territórios em que se integram o natural e o construído, o descartável e o espaço da paisagem. Estes trabalhos são de fácil paralelo com a produção norte-americana da época, bem como das práticas mais radicais da arte ambiental brasileira. Realizar essas aproximações é um ótimo exercício crítico a se fazer após percorrer a exposição.
Há também a representação, em alguns desses trabalhos, do que de fato existe de uma dada situação sobreposta por uma outra que talvez não exista, criando imagens falsamente reais, como uma combinação de trilhos de trem, por exemplo. Ainda, é da mesma época a série das poluições: nestes casos, os títulos atuam em igual força de significado ao das imagens sobrepostas que foram concebidas por meio de diferentes técnicas de reprodutibilidade. Tematizar e materializar a própria ideia de poluição me parece ser algo inédito para aquele momento de início dos anos 1970.
Nos casos em que traz o objeto “parafuso”, há um olhar que acontece como uma lupa, aquele que vai nos meandros do encaixe do próprio parafuso, no que o define enquanto tal. Já nos aportes dedicados ao caótico e sobreposto espaço exterior, o olhar é para o que se encontra fora, na cidade e nos seus mais diversos desdobramentos aparentemente aleatórios. É a percepção crítica da cidade contemporânea incontrolável. Em ambas as composições, há a reverência ao tempo. Ele é a única constante inabalável, sendo capturado momentaneamente em cada imagem construída pelo artista. E é na observação dos índices de tempo registrados na arte que compreendemos de maneira mais apurada a nossa própria história, os nossos lugares e nossas trocas no coletivo. Como disse Chico Buarque (Julinho de Adelaide) – um amigo de vida inteira e colega de faculdade do Tozzi – no primeiro verso da canção Jorge Maravilha (1974): “tem nada como um tempo após um contratempo”. E, por isso, fazer arte é batalhar sempre pelo próximo e novo tempo.