sala 1 | ALICE SHINTANI – BLACK STREAM


Alice Shintani
Black Stream

galeria marcelo guarnieri | ribeirão preto

abertura
12.10.2019 / 16h – 19h

período de visitação
12.10 – 09.11.2019


rua nélio guimarães, 1290
ribeirão preto – sp – brasil / 14025 290
[ mapa ]


Flux noir [ou tela sobre tinta]
por Ana Roman e Thierry Freitas

Esta exposição revisita trabalhos do início da trajetória artística de Alice Shintani, mas não o faz de uma maneira tradicional. Apesar de estarem muito próximos fisicamente da artista, dentro de sua casa-ateliê, os trabalhos aqui exibidos há muito mantinham-se ocultados em caixas, plásticos e papéis. Muitas obras desta mostra remetem ao início da pesquisa da artista sobre cor, materialidade e espacialidade. Aspectos que ainda a interessam, mas não somente.

Revelada no final da década passada junto com uma profícua geração de pintores, Alice passou a incorporar em seus trabalhos, de maneira sutil, muitas vezes através das cores e formas geométricas, temas que dialogam com a realidade sócio-política do país. Sua produção resiste às pressões do mercado de arte que constantemente, direta ou indiretamente, exige dos artistas um ritmo acelerado de produção. Podemos dizer que o trabalho de Alice é, de algum modo, desobediente. Não se trata, porém, de uma desobediência constantemente ativa, mas de ser obediente da pior maneira possível, em um processo de submissão ascética, que busca quase o colapso – quase iminente – de alguns dos sistemas nos quais estamos submetidos.

Nos últimos anos, os trabalhos da artista passaram a ser exibidos menos em contextos institucionais e museológicos, para serem encontrados. Paredes brancas deram lugar a espaços de passagem: praças, postes, uma caixa de fósforo posicionada perigosamente para ser pisada e destruída no espaço, e o encontro da artista com os transeuntes, que se revela em ações como “Compro Ouro” (2019), em que a artista desenha, em uma ação com o educativo da instituição, o símbolo guaraní para o Cruzeiro do Sul em carvão e urucum no chão da calçada em frente ao CCBB de São Paulo, ou “Tupinabentô” (2017), ação de preparo e documentação dos alimentos cozinhados e uma posterior partilha da comida com a vizinhança de seu ateliê. Tais trabalhos condensam um caráter performativo e, ao mesmo tempo, uma forma de encontrar re-existência no cotidiano.

Em “Black Stream” – título um pouco jocoso, tradução do nome da cidade de Ribeirão Preto para o inglês, e que também, remete às memórias de um hotel que recebe artistas, curadores e produtores que circulam na cidade do interior paulista (em nosso texto, optamos também por testar a tradução direta do francês como continuação da ironia contida na exposição) – a artista propõe uma instalação em que pinta as paredes da Galeria de preto, colocando sobre elas, do chão ao teto, pinturas de grandes dimensões e de tons claros e rosáceos. Os campos de cores desses quadros, feitos em tinta acrílica de parede, são irrompidos pela cor escura que passa a tomar conta do espaço da galeria. Com um olhar atento às pinturas, vemos que, apesar de seu aparente silêncio tonal, temos horizontes formais, paisagens e em alguns casos, figuras antroporformizadas de corpos monstruosos. Na instalação, não estamos diante de uma grande tela: somos colocados em uma espécie de fluxo contínuo de pinturas, que, em certa medida, se assemelha ao fluxo de água quase torrencial de um ribeirão e que é atravessada pelos diversos corpos-quadros.

Os trabalhos, que inicialmente propõem uma relação direta entre arte-espectador, passam a tensionar o lugar do sublime, assumindo feições quase aterrorizantes ao espectador. Tal sentimento não se relaciona somente à escala que assume tais corpos, mas também porque eles evocam algo maior do que a natureza em uma escala desumana. O sublime, no caso, diante desses campos de cor que se corporificam nas paredes da galeria é um “sublime por atrofia”, que abandona a natureza tradicional da forma e propõe que pensemos uma outra relação com a representação e com a pintura. Diante da proposição de Alice para essa exposição, memórias da instalação de 1915 de Malevich somam-se – e, talvez até contrapõem-se – a organicidade e geometria das formas em tons claros e em grande escala, e o espectador é absorvido para o espaço da representação sem deixar, no entanto, o espaço da vida real. A instalação na Galeria representa uma certa desobediência da artista, construir um espaço de dissenso no interior da linguagem da pintura.

Ao tomarmos certa distância para pensar a produção da artista, podemos enunciar que o interesse de Alice é, de certo modo, ressignificar a história. Desde um impulso arquivístico – em que o arquivo, na realidade, é objeto de pesquisa de onde parte seu trabalho, mas é transcendido em um movimento de criação de outros imaginários para uma dada situação e fato histórico – como no último trabalho instalado no Juquery, no qual retomou a história das mulheres dentro dessa instituição de controvérsia histórica no contexto brasileiro, até a instalação “Tuiuiú” (2017), em que bandeirinhas, de inspiração tibetana, foram expostas na praça Dom José Gaspar e trocadas com transeuntes – a poética de Alice constrói-se no encontro entre as esferas da macro e da micropolítica. Esses termos nos remetem a um contexto de urgência por enfrentar as tensões da vida humana em sociedade e às ações que liberam um movimento vital e que possuem uma força inventiva de mudança. A macropolítica relaciona-se ao movimento de inserção direta do sujeito nas tensões que produzem uma cartografia dominante e a possibilidade de redistribuição de lugares sociais; já a micro visa construir novos diagramas sensíveis e representações do mundo; a micropolítica está no invisível/indizível e nas práticas cotidianas.

A produção da artista encontra-se entre esses dois lugares da política e tem uma grande potência de invenção na realidade e de construção de outros mundos no campo das artes e no cotidiano. Nós, que somos próximos dela e convivemos diariamente com suas reflexões e conversas, temos muita sorte em viver perto de tanto potencial transformador.

Alice Shintani
Black Stream

galeria marcelo guarnieri | ribeirão preto

opening
October 12, 2019 / 4pm – 7pm

exhibition
October 12 – November 9, 2019


rua nélio guimarães, 1290
ribeirão preto – sp – brasil / 14025 290
[ mapa ]


A Galeria Marcelo Guarnieri apresenta, de 12 de outubro a 09 de novembro de 2019, em sua sede de Ribeirão Preto, as exposições “Black Stream” de Alice Shintani e “Foco Variável” de Marcus Vinicius. Alice Shintani ocupará a Sala 1 com pinturas produzidas entre 2007 e 2019, período que marca os doze anos de trabalho com a Galeria Marcelo Guarnieri. Na Sala 2, Marcus Vinicius apresentará trabalhos da série “Listrados”, produzidas entre 2013 e 2019 e “Livros”, produzidas entre 2018 e 2019.

Formada em ciência da computação pela UNICAMP, Alice Shintani foi montanhista e integrou, no início dos anos 90, a equipe pioneira de trabalho que desenvolveu e implementou a Internet banda-larga no Brasil. Quando fez a transição para o campo da arte, iniciada por cursos e grupos de estudos orientados por artistas estabelecidos, manteve-se instigada a pensar em estratégias de democratização de meios e linguagens e a estabelecer relações de horizontalidade através de sua pesquisa. O espírito da criação e do compartilhamento que norteou a internet em seu início – que hoje está certamente muito mais próximo das práticas de vigilância e controle – e os efeitos que a internet banda-larga podia causar em um país continental como o Brasil pós-ditadura, nos ajudam a situar o trabalho que Shintani desenvolveu posteriormente com tintas, pincéis, linhas de costura e brigadeiros.

Depois de doze anos de produção, a artista apresenta em “Black Stream” pinturas oriundas de séries diversas em uma instalação que ocupa duas grandes paredes da galeria. Poderão ser vistas obras das séries “Quimeras” (2007), “Bakemono” (2010) ou “Lindoya” (em andamento desde 2008), entre outras, dispostas sobre um fundo preto que contrastará com os suaves e rebaixados tons que as compõem. Quando não eram pintadas diretamente sobre as paredes dos espaços expositivos, como em “Éter” (2009) e “Estacionamento” (2008), as obras eram pensadas em conjunto para lugares específicos. A marcação do fundo preto em “Black Stream” funciona, portanto, como uma indicação de que as obras se apresentam em um momento distinto de suas origens, em um encontro que une muitos passados em nosso presente. A tinta de parede utilizada e a paleta de tons escolhida por Alice nestas pinturas partiam de um desejo da artista de “falar mais baixo para também poder ouvir” e a escala de suas telas, muitas vezes próximas à escala humana, também era pensada como uma maneira de aproximação com o espectador. Convocar a cor preta em 2019 pode sinalizar também uma espécie de ponderação em relação a esse esforço pela comunicação e contato que tanto move Alice: doze anos depois, como se estabeleceram essas trocas? Talvez seja um bom momento para considerar os ruídos, comuns em qualquer processo de interlocução – refletir sobre a disseminação descontrolada das ​fake news na internet no Brasil de agora, pensando na trajetória da artista, pode ser um bom paralelo a ser traçado.

As obras mais atuais, produzidas neste ano de 2019, são os guaches que dão forma à plantas amazônicas, exuberantes em suas cores vivas, flutuam também sobre fundos pretos. Dialogam de maneira mais direta com as “Sanfoninhas” que Shintani vem produzindo desde 2015, apresentadas dois anos depois em “Menas”, sua terceira individual na Galeria Marcelo Guarnieri. Essas obras fazem parte de um processo em que a artista subia o tom de sua paleta de cores, incluindo o vermelho e o verde-bandeira por exemplo, ao mesmo tempo em que reduzia a escala de suas pinturas, experimentando em guache desde 2015 em “Zika” ou organizando sua produção e venda de brigadeiros em um tabuleiro ambulante com o “Óia Brigadeiro”. Nas “Sanfoninhas”, Shintani explora materialmente algo que já investigava em seus trabalhos mais antigos: distorções, ampliações ou sintetizações de imagens do mundo e da memória em formas geométricas e campos de cores. São dobraduras em papel que guardam formas que se movem, contraindo-se e expandindo-se, imagens em transição que se configuram como uma maneira da artista se aproximar de uma realidade cada vez mais difusa e incompreensível.

Alice Shintani integra a publicação “100 painters of tomorrow”, da editora Thames & Hudson (2014) e foi contemplada com o prêmio-aquisição no “II Prêmio Itamaraty de Arte Contemporânea” com a série Bakemono (2013). Durante a edição da sp-arte/2017, Alice Shintani foi vencedora do Prêmio de Residência com a instalação “Menas” e passou três meses na Delfina Foundation, em Londres (Reino Unido). Participou de diversas exposições individuais e coletivas, destacando-se as seguintes instituições: Museu de Arte Contemporânea da USP, São Paulo, Brasil; Paço Imperial, Rio de Janeiro, Brasil; Centrum Sztuki Wspólczesnej, Poznán, Polônia; Centro Cultural São Paulo, Brasil; Instituto Itaú Cultural, São Paulo, Brasil; Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, Brasil; Museu Rodin, Salvador, Brasil; Museu Oscar Niemeyer, Curitiba, Brasil; Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil; Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto, Brasil. Em 2019, convidada pela equipe do Programa CCBB Educativo de São Paulo, propôs a intervenção “Compro Ouro” no centro histórico da cidade. Recentemente, participou do programa de residência no Complexo Hospitalar do Juquery, em meio a denúncias de ligações da instituição com o período da ditadura militar.

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