GERTY SARUÊ / ANTONIO LIZÁRRAGA


GERTY SARUÊ / ANTONIO LIZÁRRAGA

galeria marcelo guarnieri | são paulo

abertura
07.10.2017 / 14h – 18h

período de visitação
07.10 – 14.11.2017


Alameda Lorena, 1966
São Paulo – Brasil
[ mapa ]


GERTY SARUÊ

Viver em uma metrópole é, sem nenhuma dúvida, uma experiência arrebatadora. Testemunhar a construção de uma em plena década de 50 no Brasil, então, não haveria de ser menos. Foi o caso de Gerty Saruê, nascida na Áustria e crescida na Bolívia, chega em São Paulo no ano de 1954, em pleno processo de industrialização. Seu contato com essa nova dinâmica certamente a permitiria estar mais atenta a suas particularidades, não só aos aspectos mais sensoriais como o ritmo acelerado ao qual todos eram impelidos a seguir ou ao estado caótico que de alguma maneira ordenava o frenesi, mas também aos aspectos materiais e visuais dessa paisagem urbana. Não passou despercebido ao seu olhar as engrenagens e ferramentas, as planilhas e os diagramas, as plantas urbanísticas, os materiais de escritório, os números e os letreiros infinitos: todos eles poderiam ser, afinal, códigos de uma nova língua. Assimilar esse idioma da metrópole, para Gerty, talvez tenha sido tão importante quanto assimilar a língua portuguesa, e por que não, por meio de suas colagens, desenhos, gravuras ou fotografias, desenvolver essas linguagens?

Suas composições, embora se utilizem de formas geométricas e de objetos utilitários, se interessam menos pela aparência asséptica desses elementos e mais pela sujeira ou desordem na qual podem estar inseridos. Não à toa, Saruê frequentemente incorpora em seus trabalhos algumas texturas, carimbos ou hachuras que nos trazem a sensação de que estão cobertos pela fuligem dos carros ou borrados por manchas de graxa. Quando faz uso de tons terrosos, parece querer falar menos da natureza bucólica e mais da natureza devastadora e poderosa, capaz de corroer, literalmente, a dinâmica industrial. Em Sem Título, de 1967, uma assemblage em madeira, essa força fica aparente nas peças enferrujadas que, ao sofrerem tal processo de oxidação, carregam o peso da obsolescência de um mundo regido pela lógica da produtividade. Gerty Saruê cria rebeliões gráficas capazes de desestabilizar o entendimento das coisas vigentes. A série Burocráticas, realizada na primeira metade da década de 1980, é espelho daquilo que estava em pauta na economia: crise na América Latina, PIB em queda e aumento da inflação. A confusão gerada pelo sistema econômico era parecida com a desestabilização gráfica criada pela artista. Não se entende o porquê das coisas, nem tampouco o que Gerty preenche nos formulários. O emprego das superposições e sobreposições, também tão frequentes em seus trabalhos, estão em pleno contato com essas outras estratégias de que faz uso – como a incorporação de materiais descartados ou a ressignificação de signos impessoais e inexpressivos da vida cotidiana – oferecendo a nós a sensação de vertigem, como se tudo estivesse fora do lugar. Servem quase como registros fósseis invertidos de uma sociedade tão preocupada em ordenar e progredir. Não serviriam, afinal, como registros do colapso da ordem racional do mundo?


There is no doubt that living in a metropolis is a thrilling experience. Witnessing the construction of a big capital in the mid 50’s in Brazil, would not be different. This was Gerty Saruê’s case. She was born in Austria, raised in Bolivia, and just arrives in São Paulo in 1954, in full process of industrialization. Her contact with this new dynamic would certainly allow her to be more attentive to her particularities, not only to the more sensorial aspects such as the accelerated pace to which everyone was impelled to follow or to the chaotic state that somehow ordered the frenzy, but also to the material and visual aspects of this urban landscape. The gears and tools, the spreadsheets and diagrams, the urban plans, the office supplies, the numbers, and the infinite signs: all of them could, after all, be codes of a new language. Looking through Gerty’s perspective, to assimilate this metropolis language perhaps was as important as assimilating the Portuguese language, and so why not, through her collages, drawings, engravings or photographs, to develop these languages?

Her compositions, although using geometric forms and utilitarian objects, are less interested in the aseptic appearance of these elements and more in the dirt or in the disorder in which they may be inserted. No wonder Saruê often incorporates in her works some textures, stamps or hatches that give us the feeling that they are covered by the soot of the cars or blurred by grease stains. When she makes use of earthy tones, she seems to want to speak less of bucolic nature and more of devastating and powerful nature, capable of literally corroding industrial dynamics. In Untitled, 1967, an assemblage of wood, this force becomes apparent in the rusted pieces that, undergoing such oxidation process, carries the weight of the obsolescence of a world ruled by the logic of productivity. Gerty Saruê creates graphic rebellions capable of destabilizing the understanding of current things. The Bureaucratic series, which took place in the first half of the 1980s, is a mirror image of what was in the economy: crisis in Latin America, falling GDP and rising inflation. The confusion generated by the economic system was similar to the graphic destabilization created by the artist. You can not understand why, nor what Gerty fills in the forms. The use of overlappings, which are so frequent in her work, are in full contact with these other strategies of her work – such as the incorporation of discarded materials or the re-signification of impersonal and unimpressive signs of everyday life – offering to the public some kind of dizziness, as if everything was out of place. They serve almost like reversed fossil records of a society preoccupied with ordering and progressing. Wouldn’t they, after all, serve as records of the collapse of the rational order of the world?

GERTY SARUÊ / ANTONIO LIZÁRRAGA

galeria marcelo guarnieri | são paulo

opening
October 07, 2017 / 2 – 6pm

exhibition
October 07 – November 14, 2017


Alameda Lorena, 1966
São Paulo – Brasil
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ANTONIO LIZÁRRAGA

Igualmente absorvido pela atmosfera urbana e industrial da metade do século XX de uma cidade como São Paulo, Antonio Lizárraga parecia lidar com o seu trabalho a partir de uma motivação particular pelas falhas dos sistemas. Embora seu pensamento estético estivesse alinhado a postulados de matriz construtiva, como o desenvolvimento de uma ideia por meio de um pensamento matemático e geométrico que se utilizasse de uma linguagem gráfica e econômica, Lizárraga não se intimidava pelo caráter hermético ou absoluto que tais postulados poderiam carregar. Seu fascínio pelo maquinário moderno de escalas monumentais, como escavadeiras e guindastes, ou pelos projetos urbanísticos de grandes avenidas, vinha associado ao potencial de acontecimentos imprevistos que traziam consigo: o acidente, o erro, a ruína ou o desmoronamento. Tal interesse se manifestava de maneira muito sutil em seus mais diversos campos de atuação, fosse a área gráfica, tridimensional e pictórica, da programação visual ou poesia, onde produzia articulações ambíguas entre o mecânico e o orgânico. Nesse sentido, o artista parecia testar a forma para além das exigências de um raciocínio ordenador impecável. É o que ocorre, por exemplo, em seus Cubos/Sem Título, 1990, quando parece dissecá-los, seccionando aos poucos suas superfícies, o que acaba por dar origem a outros planos e possibilidades de equilíbrio e estrutura para um objeto tridimensional tão idealizado quanto é o cubo.

A ideia de limite, então, parece ser um bom ponto de apoio para aproximar-se da produção de Antonio Lizárraga. É possível abordá-la a partir do caráter flexível de sua obra, que transitava entre diferentes meios e linguagens e buscava formas distintas de operar, como por exemplo, quando colaborou com o ‘Suplemento Literário’ do jornal O Estado de São Paulo, entre 1959 e 1967, realizando desenhos. Possibilitar que o trabalho circulasse na esfera pública por meio do jornal era uma forma de democratizar o acesso da arte a um público não especializado, assim como quando projetou vasos de vidro e luminárias para a indústria de objetos decorativos. Era sobre o limite – ou sua ausência – de que se tratavam muitas de suas composições no papel: que forças estavam em jogo entre os elementos que Lizárraga escolhia para habitar o espaço quadrado? Como tais elementos relacionavam-se com as bordas, ou com as diagonais? Havia ali um exercício constante de fricção entre o desenho/pintura como projeto e como desenho/pintura mesmo. Antonio Lizárraga, aliás, levou a ideia de limite às últimas consequências, quando, acometido aos 58 anos por um acidente vascular que paralisou, parcialmente, suas pernas e braços, seguiu produzindo com o auxílio de assistentes. É a partir daí que surgem os desenhos ditados, série de trabalhos que se materializavam por meio da ação de outras pessoas que operavam a partir das orientações e comandos que Lizárraga emitia por meio da voz. Antes dos desenhos ditados, porém, vieram os poemas ditados, e talvez, a melhor ilustração sobre como se relacionava Lizárraga com a definição – ou expansão – da ideia de limite, seja mesmo dada por um deles:

“existe um homem que constrói mirantes
para os peixes começarem a gostar do mar”


Equally absorbed in the mid-twentieth-century urban and industrial atmosphere of a city like São Paulo, Antonio Lizárraga seemed to be dealing with his work from a particular motivation for system failures. Although his aesthetic thinking was in line with constructive matrix postulates, such as the development of an idea by means of a mathematical and geometric thought using a graphic and economic language, Lizárraga was not intimidated by the hermetic or absolute character that such postulates could carry. His fascination with modern machinery of monumental scales, such as excavators and cranes, or the urban designs of great avenues, was associated with the potential of unforeseen events that brought with him: accident, error, ruin or collapse. Such interest manifested itself in a very subtle way in its various fields of activity, whether the graphic, three-dimensional and pictorial area of visual programming or poetry, where it produced ambiguous articulations between the mechanical and the organic. In this sense, the artist seemed to test form beyond the demands of an impeccable computer reasoning. This is the case, for example, of Cubes / Untitled, 1990, when he seems to dissect them, by gradually scaffolding their surfaces, which eventually gives rise to other planes and possibilities of equilibrium and structure for such a idealized three-dimensional object how much is the cube.

The idea of limit, then, seems to be a good point of support to approach Antonio Lizárraga’s production. It is possible to approach it from the flexible character of his work, which transited between different media and languages and sought different ways of operating, as for example, when he collaborated with the ‘Literary Supplement’ of the newspaper O Estado de São Paulo, between 1959 and 1967, making drawings. Enabling work to circulate in the public sphere through the newspaper was a way of democratizing art access to a non-specialist audience, as well as designing glass vases and fixtures for the decorative object industry. It was about the limit – or its absence – that many of his compositions were on paper: what forces were at stake among the elements that Lizárraga chose to inhabit the square space? How did such elements relate to the edges, or to the diagonals? There was a constant exercise of friction between drawing / painting as design and drawing / painting itself. Antonio Lizárraga, in fact, took the idea of limit to the last consequences, when, at the age of sixty, due to a vascular accident that paralyzed his legs and arms, he continued to produce with the aid of assistants. It is from there that the dictated drawings emerge, a series of works that materialized through the action of other people who operated from the guidelines and commands that Lizárraga emitted through the voice. Before the dictated drawings, in a first period after the accident in which he recovered, partially, oral communication, the dictated poems emerged. Perhaps the best illustration of how Lizárraga related to the definition – or expansion – of the idea of a limit is even given by one of them:

“there is a man that builds gazebo
for fish to start liking the sea”

gmc_aliceshintaniGERTY SARUÊ / ANTONIO LIZÁRRAGA