CARLOS FAJARDO. DENTRO


CARLOS FAJARDO. DENTRO
curadoria Henrique Xavier

galeria marcelo guarnieri | ribeirão preto

abertura
25.08.2018 / 15h – 19h

período de visitação
25.08 – 11.10.2018


rua nélio guimarães, 1290
ribeirão preto – sp – brasil / 14025 290
[ mapa ]


Dentro. Um sutil e finíssimo risco branco atravessa de ponta a ponta a transparência. Superfícies transparentes em acrílico se encontram em arestas para formar um cubo vazio com 30 cm de lado. Os sutis riscos brancos percorrem o interior das paredes de acrílico transparente, gerando, dentro do cubo, a imagem de um segundo cubo. Um dentro do outro, sendo que a segunda figura geométrica está levemente deslocada em um giro. Um giro que nos faz ver ilusórias paredes que não estão lá. Realizada em 1966 e intitulada neutral, vem a ser uma das primeiras obras de Carlos Fajardo e está agora dentro de uma nova galeria em 2018. Ao olhar através das paredes transparentes e mesmo invisíveis deste duplo sólido geométrico, você percebe a presença de doze obras do artista a ocupar o “cubo branco” que constitui o interior da Galeria Marcelo Guarnieri, em Ribeirão Preto. São obras de épocas distintas, embora a sua maior parte tenha sido realizada nos últimos dois anos, algumas, inclusive, inéditas. Você se pergunta pelo motivo de inaugurar a mais recente mostra de um artista contemporâneo, em plena produtividade, justo com uma obra de cinquenta e dois anos, ou seja, qual o sentido de colocar neutral dentro do mesmo espaço com as obras atuais?
Ao observar o cubo de acrílico você não apenas contempla, através de sua transparência, as demais obras no espaço da galeria, mas, ao mesmo tempo, percebe na cristalina superfície a presença de todo o entorno ser duplicado ao ser refletido; e, neste tênue reflexo, toda a exposição é devolvida mais uma vez para dentro do cubo. Há uma sobreposição entre transparências e reflexos e entre a galeria, o cubo de acrílico, as demais obras e você. Não se trata de uma retrospectiva ou antologia com obras datadas, mas da interação entre obras reunidas como parte de uma única e mesma experiência atual. Além disto, mais do que uma sequência de obras, lado a lado, temos uma montagem que concebe a galeria com as obras como se estas fossem uma única instalação. Sobressai-lhe uma segunda questão: poderia o cubo, que em seus reflexos sutilmente traz as diversas obras para dentro de si, alegorizar a situação da exposição no interior do “cubo branco” da galeria?
Certamente os reflexos aproximam esteticamente neutral das obras mais novas, estas são compostas por grandes superfícies brilhantes, transparentes, reflexivas, semirreflexivas e coloridas. A galeria e a exposição toda é reciprocamente espelhada por estas diversas superfícies, a partir de diferentes matizes de desvios de luz e de cor. Outra característica da exposição comum ao cubo é a forma ortogonal do quadrado e do retângulo que se espalha praticamente por todas obras. Porém, ambas características produzem apenas aproximações superficiais se nos esquecermos daquilo que de dentro do cubo põem em movimento a sua forma duplicada: uma torção, ou seja, o deslocamento que desde dentro é capaz de produzir uma ilusão.
Você admira uma grande obra de vidros coloridos ao lado de neutral e irrevogavelmente, também, contempla, por intermédio dos reflexos, uma segunda obra espelhada sem cor que reciprocamente espelha a colorida. As dimensões e a forma com que as obras são dispostas no espaço são pensadas para que por meio de seus reflexos uma dialogue com a outra, ou melhor, uma esteja dentro da outra, obras postas face a face, como dois espelhos a se olharem, espelhando-se ao infinito.
A vasta área de cor azul reflexiva desperta a sua atenção por trabalhar com algo que lhe recorda uma técnica tradicional da pintura: a ‘velatura’; técnica onde o pintor sobrepõe finas camadas de tinta semitransparente. A obra faz algo similar, pois a sua extensa superfície em um peculiar tom azul é somente obtida a partir da sua sobreposição com as cores amarela e laranja que, por sua vez, produzem os tons roxo e verde que por si mesmos não existem, mas são efeitos de um jogo de véus entre transparências de cores em vidro. As lisas e regulares superfícies de cor, contudo, produzem algo contrário à abstração da cor em si, pois criam, em seus reflexos, um universo de imagens coloridas onde, você, espectador, em meio as demais obras da exposição, é capturado. Diante de tais obras sentimos um estranho prazer, pois temos nossas imagens instantaneamente transformadas em arte, multiplicadas e cobertas por belíssimas e reluzentes cores. Porém, a sobreposição dos vidros reflexivos forma imagens de um modo em si deslocado, pois os diferentes ângulos em que os vidros estão apoiados na parede produzem o descasamento entre os traços e as áreas de cor das imagens refletidas, produzindo a ilusão de uma espécie de fantasmagoria em que as imagens não conseguem estabilizar-se em um único corpo, mas pairam sempre aquém ou além de si mesmas.
A fantasmagoria de imagens se torna ainda mais clara na obra de longas superfícies reflexivas sem cores, onde as subdivisões das placas apoiadas, umas sobre as outras, fazem com que na obra se multiplique algo como que seis diferentes tipos de espelhos verticais. É uma sensação bela e estranha ao mesmo tempo: um ritmo de tons de cinzas e de transparências, de um e de múltiplos nós refletidos nas superfícies. Um ritmo de imagens que em uma ilusão se estilhaça, pois cada novo conjunto de imagens é formado em um ângulo distinto do anterior e, assim, as suas fronteiras imagéticas não se encontram neste contínuo de reflexões. Algo com se a grande superfície reflexiva de Fajardo funcionasse como um espelho quebrado, fazendo com que de dentro de seus cacos sejam devolvidas, simultaneamente, a mesma e outra imagem de nós mesmos.
Como aproximar esta presença reflexiva às obras de outras épocas que não operam por espelhamentos, como as duas peças quadradas de 1984? A primeira peça é uma superfície translúcida que trabalha com algo tão imaterial, invisível e envolvente quanto a luz refletida, pois a obra porta dentro de si uma essência que se expande no ar, compondo a instalação de um sutil campo perfumado ao seu redor. A segunda peça da mesma data, ao contrário, não possui nada de etéreo, é uma compacta presença, completamente opaca e maciça, um bloco de azul escorado contra a parede, puro pigmento prensado, um acúmulo de um azul que, por dentro, possui mais azul. Mais curioso ainda é relacionar os reflexos ao grande emaranhado de cipó de 1998 que desarticula a ortogonalidade das obras e da galeria, um elemento definitivamente estranho dentro do espaço, um volume informe que, tal qual o azul, possui cipó e mais cipó em sua interioridade. Como refletir um emaranhado desde dentro?
Esbocemos o caminho de uma resposta a partir de uma outra obra, concebida em 1989, e que, em tudo, também, parece distar da delicada manipulação da luz pelos reflexos. A obra é composta de cerca de treze mil tijolos empilhados, formando o volume regular de uma pirâmide negativa e invertida no interior de um grande paralelepípedo de um metro de altura com quatro lados de quatro metros. A sua proporção, intencionalmente adequada à interação do corpo humano, põe os tijolos à altura da mão, evocando a intenção da manipulação e do toque, mas, mais que isso, ela gera uma forte interação ótica. A simetria da pirâmide invertida nos convida a adentrarmos visualmente a obra pelo olhar que se debruça e rola adentro na sequência decrescente de degraus de tijolos que se afunila para o interior da pirâmide até alcançar, talvez, o elemento mais importante da obra: o buraco que a faz emoldurar um pequeno pedaço da superfície do chão da galeria. Uma vez que os olhos alcançam o chão, um sistema é fechado: os olhos produzem um looping, percorrem a superfície interna da pirâmide, “tocando” o chão, e através desta extensa superfície da galeria, eles voltam ao seus pés. Por meio desta volta, a obra é capaz de ativar uma estranha percepção da superfície onde você se encontra. Olhar para o centro da pirâmide é sentir o próprio solo, é sentir seus próprios pés, é sentir-se de pé observando algo e, neste mesmo espaço e tempo, também poder ser observado. Eis que a tua presença e a da galeria, tal qual na rede recíproca de reflexos, são mais uma vez devolvidas pela obra em uma experiência que te recoloca no mundo por meio da arte.
Em meio a esta presença estética abrem-se mais perguntas. Como, mais uma vez, re-significar o deslocamento dentro da exposição, então, a partir de uma grande obra fotográfica inédita? A obra se encontra dobrada desde um corte ao seu centro: dois grandes espelhos, dois vidros esverdeados e duas imagens fotográficas compondo três superfícies divididas ao meio. Temos três tipos de imagens: em primeiro lugar, os espelhos criam uma espécie de borda que traz para dentro de si a própria galeria, as obras e você -que se encontra ao redor da fotografia. Em segundo lugar, o vidro, levemente esverdeado e deslocado em relação imagem fotográfica, produz uma suave, mas presente velatura de reflexo e cor que se misturam a imagem. Por fim, entre o vidro e o espelho, a imagem fotográfica é composta de duas grandes superfícies vermelhas e quase abstratas, são manchas de luz e sombra, produzindo um formato orgânico e sem definição. Porém, ao caminhar ao redor da fotografia, tem-se a estranha impressão de ver enormes lábios avermelhados procurando enviar beijos ao seu corpo. Um beijo ou quase? Mais uma tocante pergunta que te faz, novamente, e de um outro modo, adentrar a exposição?

por Henrique Xavier

CARLOS FAJARDO. DENTRO
curated by Henrique Xavier

galeria marcelo guarnieri | ribeirão preto

opening
August 25, 2018 / 3 – 7pm

exhibition
August 25 – October 11, 2018


rua nélio guimarães, 1290
ribeirão preto – sp – brasil / 14025 290
[ mapa ]


Dentro (Inside). A subtle and very thin white scratch crosses the transparency end to end. Transparent acrylic surfaces meet on edges to form an empty cube of a 30 cm each side. The subtle white scratches run through the transparent acrylic walls, creating inside the cube the image of a second cube. One inside the other, the second geometrical figure being slightly shifted in a spin. A spin that makes us see illusory walls that are not there. Created in 1966 and entitled NEUTRAL, it is one of the first works of Carlos Fajardo and it is now inside a new gallery in 2018. Looking through the transparent and even invisible walls of this double geometric solid, you notice the presence of twelve works of the artist to occupy the “white cube” that constitutes Galeria Marcelo Guarnieri’s interior, in Ribeirão Preto. There are works of different periods, although most of them have been done in the last two years, some of them even unpublished. You may wonder the reasons to inaugurate the most recent show of a contemporary artist, in full productivity, with a work of fifty-two years, what is the point of putting NEUTRAL in the same space with the current works?
When you look at the acrylic cube you not only contemplate, through its transparency, the other works in the gallery’s space, but at the same time you notice on the crystalline surface the presence of the whole environment being duplicated when reflected; and, in this tenuous reflection, the whole exhibition is returned once more into the cube. There is an overlap of transparencies and reflections and of the gallery, the acrylic cube, all the other works and you. It is not a retrospective or anthology with dated works, but the interaction of works assembled as part of one and the same experience today. In addition, more than a sequence of works, side by side, we have an assembly that conceives the gallery with the works as if they were a single installation. A second question emerges: could the cube, which in its reflections subtly bring the various works into itself, allegorize the situation of the exhibition within the “white cube” of the gallery?
Certainly the reflections brings NEUTRAL aesthetically close to the recent works, which are composed of large, shiny, transparent, reflective, semi-reflective and colored surfaces. The gallery and the entire exhibition are reciprocally mirrored by these various surfaces, from different shades of light and color diversions. Another feature of the exhibition that also correspond to the cube is the orthogonal shape of the square and the rectangle that are spread in practically all works. However, both characteristics produce only superficial similarities if we forget what inside of the cube set in motion its duplicate form: a twist, that is, the displacement that from within is capable of producing an illusion.
You admire a great work of colored glass next to NEUTRAL and irrevocably, also, contemplates, through the reflections, a second reflected colorless work that reciprocally mirrors the colored one. The dimensions and how the works are displayed in space are designed so that through their reflections one dialogues with the other, or rather, one inside the other, works put face to face, like two mirrors to look at each other, mirroring themselves to the infinite.
The vast area of reflective blue draws your attention by working with something that reminds you of a traditional painting technique: the ‘velatura’; a technique where the painter superimposes thin layers of semitransparent paint. The work does something similar, because its extensive surface in a peculiar tone of blue is only obtained from its overlap with yellow and orange which, in turn, produce the purple and green tones that by themselves do not exist, but are effects of a set of veils between transparencies of glass colors. The smooth and regular surfaces of color, however, produce something contrary to the abstraction of the color itself, for they create, in their reflections, a universe of colored images where, you, the spectator, among the other works of the exhibition, are captured. In front of such works we feel a strange pleasure, because we have our images instantly transformed into art, multiplied and covered by beautiful and shining colors. However, the overlap of reflective glasses forms images in a displaced way, since the different angles in which the glasses are supported on the wall produce the mismatch between the strokes and the colored areas of the reflected images, producing the illusion of a kind of phantasmagoria in which the images cannot stabilize in a single body, but always fall below or beyond themselves.
The phantasmagoria of images becomes even clearer in the work of long, reflective and colorless surfaces, where the subdivisions of the plates supported, one on the other, cause in the work to multiply something like six different types of vertical mirrors. It is a beautiful and strange sensation at the same time: a rhythm of shades of grey and transparencies, one and multiple nodes reflected on the surfaces. A rhythm of images that in an illusion shatters, for each new set of images is formed in a different angle from the previous one and, thus, its imaginary borders are not in this continuum of reflections. Something like if Fajardo’s large reflective surface worked like a broken mirror, showing the same and another image of ourselves returned from inside its shards, simultaneously.
How to approach this reflexive presence to the works of other periods that do not operate by mirroring, like the two square pieces of 1984? The first piece is a translucent surface that works with something as immaterial, invisible and overwhelming as the reflected light, because the work carries within itself an essence that expands in the air, granting the installation a subtle fragrant field. The second piece of the same period, on the other hand, has nothing ethereal, it is a compact presence, completely opaque and massive, a block of blue leaning against the wall, pure pressed pigment, an accumulation of a blue that, inside, possesses more blue. Even more curious is to relate the reflections to the great tangle of vines of 1998 that disarticulate the orthogonality of the works and the gallery, a definitely strange element within the space, a report volume that, like the blue, has vines and more vines in its interiority. How to reflect a tangle from within.
We trace the path of an answer from another work, executed in 1989, which, in everything, also seems to be far from the delicate manipulation of light by reflections. The work consists of about thirteen thousand stacked bricks, forming the regular volume of a negative pyramid and inverted inside a large parallelepiped one meter high with four sides of four meters. Its proportion, intentionally adapted to the interaction of the human body, puts the bricks at the level of the hand, evoking the intention of manipulation and touch, but more than that, it generates a strong optical interaction. The symmetry of the inverted pyramid invites us to visually enter the work by the gaze that slopes and rolls inside the descending sequence of brick steps that tapers into the pyramid until it reaches perhaps the most important element of the work: the hole that frames a small piece of the surface of the gallery floor. Once the eyes reach the ground, a system is closed: the eyes produce a looping, run through the inner surface of the pyramid, “touching” the floor, and through this extensive gallery surface, they return to the feet. Through this spin, the work is able to activate a strange perception of the surface where you are. To look at the center of the pyramid is to feel the soil itself, to feel your own feet, to feel yourself standing watching something and, in this same space and time, also to be observed. Then, your presence and that of the gallery, just as in their reciprocal network of reflections, are once again returned by the work in an experience that replaces you in the world through art.
In the middle of this aesthetic presence there are more questions. How, once again, to re-signify the displacement within the exhibition, then, from a great unpublished photographic work? The work is folded from a cut to its center: two large mirrors, two green glasses and two photographic images composing three surfaces divided in half. We have three types of images: firstly, the mirrors create a kind of border that brings into it the gallery itself, the works and you – that is found around the photograph. Secondly, the glass, slightly greenish and shifted in relation to the photographic image, produces a smooth but present velatura of reflection and color that blends the image. Finally, between the glass and the mirror, the photographic image is composed of two large red and almost abstract surfaces, they are smears of light and shadow, producing an organic and undefined shape. But while walking around the picture, one has the strange impression of seeing huge red lips trying to send kisses to his body. A kiss or almost a kiss? Another touching question that makes you, again, and in another way, enter the exhibition?

by Henrique Xavier

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